Rosane Gutjahr, de 65 anos, ainda luta por Justiça para morte do marido Rolf Gutjahr, um dos mortos a bordo do voo 1907, atingido por jato pilotado por americanos

"Não foi um acidente. Acidente é outra coisa." O desabafo é de Rosane Gutjahr, de 65 anos. Há quase 17 anos, a viúva do empresário Rolf Gutjahr, um dos 154 mortos a bordo do voo 1907, da Gol, dedica seus esforços para que os dois pilotos americanos do jato Legacy, da Excel Air, que se chocou contra o avião, sejam devidamente punidos pela série de erros que contribuíram para a queda e que foram identificados no decorrer das investigações. 

Esta semana, o governo americano comunicou às autoridades brasileiras que, apesar da condenação em trânsito e julgado no TRF-1 por responsabilidade no incidente, e mandado de prisão em aberto desde 2017, Joseph Lepore e Jan Paul Paladino não serão extraditados para cumprimento da pena de 3 anos em regime aberto no Brasil, com base no que prevê o tratado firmado entre os dois países.

A decisão não surpreende Rosane, já que os termos são claros. Ela, no entanto, tem expectativa agora de que as autoridades brasileiras se articulem para que eles cumpram a condenação, mesmo que branda, em solo americano.

— Nós já sabíamos que os EUA não iriam aceitar a extradição. Por conta do acordo e de uma série de questões políticas e diplomáticas envolvidas. O próprio juiz da causa, aliás, ciente disso, solicitou aos EUA há cinco anos que, caso eles não fossem extraditados, que cumprissem pena equivalente lá. O problema é que os americanos estão sentados em cima desse processo, não tomam atitude. Agora, a partir dessa decisão oficial de não extraditá-los, o que espero é que o governo brasileiro informe ao juiz da causa e ele tome alguma providência a partir disso — comenta Gutjahr.

Contramão e sistemas de segurança primordiais desligados

Naquela sexta-feira, dia 29 de setembro de 2006, Joseph Lepore e Jan Paul Paladino, por imperícia, comprovadamente levantaram voo sem ativar o transponder (sistema que permite a detecção da aeronave pelos radares de controladores de voo) e o Sistema Anticolisão de Tráfego (TCAS, sigla em inglês para Traffic Collision Avoidance System), que permaneceram desligados. 

A missão era levar o jato, adquirido pela empresa no Brasil, até a sede operacional em Long Island (Nova Iorque, EUA). Por um erro grave que teria sido cometido ainda pela torre de controle do aeroporto de onde decolaram, em São José dos Campos (SP), os pilotos teriam sido orientados a seguir na contramão da mesma aerovia por onde passaria o 1907.

Naquela tarde, o jato se chocou contra a asa do Boeing 737 na velocidade de uma bala. Mesmo assustados e com a aeronave avariada, os americanos conseguiram fazer um pouso de emergência numa base militar e nenhum tripulante se feriu com gravidade. 

O voo comercial não teve a mesma sorte: caiu ao norte do Mato Grosso, a 692 km de Cuiabá, na reserva indígena do Xingu . Cento e cinquenta e quatro pessoas morreram. Os pilotos do Legacy retornaram a seu país de origem pouco tempo depois e, no decorrer do processo, se manifestaram à distância, por videoconferência. Nunca mais voltaram ao Brasil.

'As pessoas morreram de graça'

Rosane Gutjahr afirma que é a única parente das vítimas que até hoje não assinou acordo de reparação com a companhia aérea. Ela conta que, com o tempo, também acabou perdendo o contato com os demais familiares dos mortos na tragédia. A viúva, no entanto, acredita que a aplicação da pena por responsabilização dos pilotos seria de interesse de todos. "As pessoas morreram de graça", lamenta.

— Eu sei que eles (os pilotos) vivem normalmente a vida deles nos EUA. E o nome deles sequer está na Interpol. Podem estar viajando pelo mundo, sem qualquer impeditivo, vivendo uma vida normal, mesmo tendo matado 154 pessoas, como se nada tivesse acontecido — desabafa. 

— Em nome das pessoas que morreram, e para evitar que isso volte a acontecer no futuro, espero que o governo federal entre em contato como juiz da causa. O que podemos fazer neste momento é cobrar dos órgãos responsáveis. Que eles cumpram a pena nos EUA, que percam o brevê e voltem à lista da Interpol. Não foi um acidente, acidente é outra coisa.

'Uma dor constante': a sexta-feira que nunca acabou para a família

Rosane conta que, desde aquele dia 29 de setembro, nunca teve sua dor pela perda do marido amenizada. "Não tive meu momento de luto ainda", desabafa. Era para ser uma sexta-feira como várias outras em que Rolf voltava para casa depois de tratar de compromissos de sua empresa de informática país afora. Passariam o fim de semana juntos, descansando e com a filha pequena de 4 anos. Quando o telefone começou a tocar, perto do horário em que ele deveria estar pousando, foi quando seu pesadelo começou. "Eu tive que reaprender tudo".

— Eu ainda não tive o meu momento de luto... não tive ainda. Está sendo uma luta desde aquele fatídico dia 29 de setembro. Até agora. É uma luta contra o sistema. Na época, a minha filha tinha acabado de fazer 4 anos. 

Hoje, tem 21. São coisas que só a gente sabe o que sente... os 15 anos da minha filha, os 21 anos dela, o primeiro dia de faculdade, a aprovação... são momentos que ela como menina sente muito essa dor de não ter o pai. Nós não conseguimos sequer colocar em palavras. É uma dor constante. Uma falta constante. 

Sinto falta dele todos os dias, em momentos que tenho que tomar uma decisão e me vejo sozinha, sem ele para me ajudar. Ele era aquele companheiro que estava sempre lado a lado: super-protetor, me protegia de tudo. Com tudo isso, tive que tomar conta sozinha da minha vida, tive que reaprender tudo... até a ir no banco, porque ele resolvia tudo para mim. 

Me faz falta esse apoio, os abraços, os momentos de indecisão, quando ele me ajudava a não sentir medo. Difícil colocar em palavras. Sei que, infelizmente, fisicamente ele não volta... mas espiritualmente ele está comigo — diz Rosane, emocionada. — Aquelas pessoas morreram de graça... que isso não volte a acontecer, e que não encarem o Brasil como terra de samba, carnaval, futebol e prostituta, achando que aqui podem fazer qualquer coisa.

A fala final é uma referência ao que teria dito o jornalista Joe Sharkey, que estava a bordo do Legacy no momento do acidente, e, logo após a tragédia, teria publicado num blog que a culpa pelo que aconteceu era dos responsáveis brasileiros e que o país é terra de "samba, carnaval e prostitutas". 

Uma ação foi movida contra ele pela própria Rosane na época dos fatos e ele chegou a ser condenado a pagar uma indenização de R$ 50 mil. "Nós não tínhamos nem recuperado os corpos das pessoas e ele (Sharkey) já estava dizendo que no Brasil só tem tupiniquim, que o Brasil é o mais idiota dos idiotas, que aqui só tem samba, carnaval e prostitutas", disse a acusação na época.

O Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), questionado sobre os próximos passos após a negativa do governo americano, respondeu em nota que o governo brasileiro foi informado pelo Departamento de Estado dos EUA da denegação do pedido de extradição dos dois nacionais norte-americanos e esclareceu que ccasos de extradição são de responsabilidade do juízo no qual se origina o processo.

A tramitação de documentos do processo, acrescenta a pasta, é competência do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), autoridade central para a cooperação jurídica internacional e que cabe ao Ministério das Relações Exteriores auxiliar o MJSP no encaminhamento da documentação às autoridades estrangeiras competentes, por meio das missões diplomáticas no Exterior.

A Justiça Federal no Mato Grosso, por sua vez, não retornou à reportagem. O GLOBO também não conseguiu contato com Joseph Lepore, Jan Paul Paladino ou suas defesas.


Fonte: O GLOBO