Multas aplicadas por órgão de fiscalização já chegam a R$ 13 milhões contra pesqueiros que usavam licença de atum para fisgar outros peixes e, entre autuados, estão barcos do pai e da madrasta do senador Jorge Seif (PL), ex-titular da pasta do governo na gestão passada

De reis dos mares a presas do homem. A apreensão de 27,7 toneladas de barbatanas de tubarão, a maior já realizada no mundo, em Itajaí (SC), divulgada mês passado, revelou como uma rede de ilegalidades domina o mercado de pesca da espécie no país, o maior consumidor da carne do animal no planeta. 

Na operação do Ibama, que já soma mais de R$13 milhões em multas, dois dos multados foram Jorge Seif e Sara Seif, pai e madrasta do senador Jorge Seif, líder do PL no Senado e que foi secretário da Pesca e Aquicultura na gestão de Jair Bolsonaro.

Na investigação, os fiscais chegaram a uma empresa que usava uma licença de pesca de atum e meca para capturar, na verdade, tubarões azul e anequim (mako). Um “drible” na lei que contribui para a entrada de várias espécies de tubarão na lista oficial de ameaçadas de extinção no Brasil, com potencial de efeito cascata no ecossistema. 

A fraude descoberta dá nova envergadura à pesca predatória, hoje um dos maiores desafios da fiscalização. Em junho do ano passado, por exemplo, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Britânico Dom Phillips foram assassinados no Vale do Javari justamente por denunciarem pesca ilegal na região.

A carga apreendida no Sul pertence à Kowalski Pescados. Além de gigantesco, o estoque foi fruto dessa “lavagem de peixe”. Proibidos de serem capturados como alvos em águas brasileiras, os tubarões só podem ser retirados do mar como “fauna acompanhante”, termo usado para aquelas espécies que, por serem abundantes, podem vir junto aos anzóis e estão autorizadas a serem incorporadas às cargas das embarcações. Mas não foi o que aconteceu no caso de Itajaí, segundo a investigação do Ibama.

O caso ajuda a explicar por que, apesar do veto à captura de tubarões, o Brasil consome, por ano, 45 mil toneladas da carne do animal. Não há uma lei que especifique o limite para pesca da fauna acompanhante, então os fiscais precisam comprovar o direcionamento dos esforços. Na carga apreendida, os índices de espécie alvo, que seriam atum ou meca, variaram entre 6,5% e 19% por lote, muito abaixo da proporção de tubarões, que deveriam ser capturados apenas acidentalmente.

Procurado, o dono da empresa, José Kowalski usou como argumento a ausência da lei que proíba que um barco seja carregado de tubarão. Mas uma ação de 2019, de uma empresa pesqueira contra o Ibama em uma situação semelhante de fiscalização da pesca de tubarão, abriu uma jurisprudência. 

Na época, o desembargador do Tribunal Federal da 4ª Região Rogério Favreto deu razão ao Ibama, ao decidir que houve direcionamento ilegal de esforço para captura de 16 toneladas de tubarão azul, em detrimento das espécies-alvo daquela licença.

Segundo a investigação do Ibama, a maioria das embarcações da recente apreensão “utilizava apetrechos de pescas utilizados especificamente para a captura de tubarão” e os padrões de movimentação dos barcos, conferidos no sistema de rastreamento, não correspondiam ao que era relatado nos mapas de bordo.

— O direcionamento usando a “fauna acompanhante” como pano de fundo é a forma mais comum de pesca ilegal de tubarão no país. A gente considera que quantidade acima de 65% a 70% de fauna acompanhante é um direcionamento — afirma Leandro Aranha, agente ambiental do Ibama em Santa Catarina e coordenador da operação Makaira, responsável pela apreensão. — Foi a maior apreensão de barbatanas da história do Brasil e do mundo. E a tendência é aumentar.

No estoque havia grande quantidade de tubarão mako, hoje incluída na lista de ameaçadas de extinção do ICMBio, e portanto não pode mais ser incorporada como fauna acompanhante. A espécie, porém, não fazia parte dessa lista na época que foi pescada.

Pai de senador e ex-secretário da Pesca é multado

As toneladas apreendidas na Kowalski foram fornecidas por cerca de 40 embarcações, que ainda estão sob escrutínio do Ibama, e o somatório dos autos de infração já ultrapassa os R$ 13 milhões. Seis barcos, que representam um terço de todo o estoque, pertenciam à família Kowalski, e os outros barcos, de terceiros, vendiam seus pescados para a empresa. 

Entre os fornecedores, há quatro embarcações que pertencem à família do senador Jorge Seif, ex-secretário da Pesca. A carga ilegal foi estocada entre 2020 e 2022, período em que ele estava no cargo. Dois barcos estão no nome do pai dele, que se chama Jorge Seif e é fundador da JS Pescados, e outros dois no nome de sua esposa, Sara Seif, madrasta do senador.

Jorge recebeu uma multa de R$458 mil, enquanto Sara de R$1,2 milhão. Conforme noticiou a coluna do Lauro Jardim, Seif já foi multado 13 vezes anteriormente, num total de R$ 5,2 milhões, por diversas modalidades de pesca ilegal. Numa delas, em setembro de 2019, quando o filho já ocupava a secretaria, foi autuado em R$ 2,8 milhões por capturar 284 tubarões azuis.

Procurado, o senador respondeu que está fora da empresa da família desde 2018 e que, portanto, não comentaria o assunto. Mas, em nota, ele acrescentou que "qualquer cidadão brasileiro, seja seu pai, seu filho ou um conhecido, que cometa algum delito ou ilegalidade, deve ser punido com o rigor da lei". No fim da nota, porém, questionou o número de multas que "o setor da pesca levou, desde o início do ano até hoje. Se não foram todos, a grande maioria de produtores pesqueiros foram autuados".

O senador não forneceu contato do pai para a reportagem. O GLOBO conseguiu falar com dois funcionários da JS Pescados, que disseram não ter autorização para dar informações ou o contato de Seif. Já Jose Kowalski, um dos donos da Kowalski Pescados disse que a maior quantidade de tuba

— Não existe lei que diga que não podemos trazer um barco carregado de tubarão em vez de atum. Lógico que nosso objetivo é atum ou meca (outra espécie de peixe alvo), que valem muito mais, mas às vezes o barco vem 100% com outra espécie que não a espécie alvo, não tem como ser diferente, sempre se pescou nesse formato — explicou Kowalski, que atribuiu a acusação a uma "interpretação do fiscal".

Outras infrações além da pesca direcionada

Além da pesca direcionada, o Ibama identificou outras infrações nas atividades dos barcos, como o não cumprimento de medidas mitigadoras obrigatórias para a proteção de aves e tartarugas. E na maior parte dos mapas de bordo, foram omitidas informações justamente sobre as “espécies capturadas incidentalmente”, cujo registro é obrigatório.

Um dos barcos analisados, o Yamaia III, que é da Kowalski, chamou a atenção dos fiscais pois sua licença era para pesca com vara e isca viva ou rede. Mas, no rastreamento, foi identificado uso de espinhel, uma linha de cerca de seis metros, que fica por longo tempo no mar para pesca de atum e que normalmente captura muito tubarão. O uso de espinhel precisa ser feito no período noturno, mas a investigação apontou lançamentos diurnos, conforme apuração junto ao rastreamento das embarcações.

O relatório do Ibama destaca que a atividade irregular nos últimos quatro anos causou “imensurável impacto à biodiversidade marinha”.

— Pela alta de quantidade de tubarão, percebemos que só podia ser espinhel. Essa embarcação foi a primeira apreensão, só nela havia 10.8 toneladas de pescados — disse Aranha que reconhece que o problema não é pontual. — Eles se utilizam dessa brecha, de captura acidental, é uma lacuna na legislação brasileira. Eles podem argumentar que o tubarão vem em alta quantidade só por causa do espinhel, mas eles pescam onde sabem que há tubarão.

Outra ferramenta que ajuda na captura de tubarões, diz Aranha, é o estropo de aço, um cabo acoplado no espinhel que impede que tubarões se desvencilhem. A ferramenta não é proibida pois pescadores argumentam que ele é necessário para atuns de maior porte.

Kowalski negou ter cometido as outras infrações constatadas pelo Ibama. Segundo ele, as medidas mitigadoras foram cumpridas, bem como a entrega do mapa de bordo e que a recomendação é pelo lançamento noturno da pesca. 

Ele argumentou que não usar o "espantalho" contra as aves seria um prejuízo para os próprios pescadores, por assim elas comeriam as iscas. Sobre o Yamaia III ele disse que a licença estaria desatualizada, e que possuía permissão para espinhel até 2012. No entanto, a licença foi "modificada" segundo ele, o que seria um "pequeno detalhe" na sua visão. O dono da Kowalski acrescentou que irá acionar a justiça contra o Ibama.

Como o tubarão ilegal é disfarçado nos lotes de venda

Além da apreensão de 27,7 toneladas, a operação Makaira identificou outra 1,1 tonelada de barbatana pescada ilegalmente e que foi apreendida em Guarulhos. Com a carga de Kowalski, os produtos seriam exportados para a Ásia, principal comprador desse item, por um preço de US$ 90 a US$ 120 dólares o quilo, e que pode chegar a até US$ 1.500 dólares ao consumidor final. Na Ásia, a barbatana é considerada uma iguaria culinária e também usada como matéria prima para cosméticos e na área de biotecnologia.

No final dos anos 90, a partir do aumento do poder de aquisição da população chinesa, cresceu muito a demanda por barbatanas, fornecido principalmente com o "finning", prática em que pescadores retiram apenas a barbatana e devolvem o tubarão para o mar. Por causa das denúncias de crueldade, porém, o finning passou a ser proibido em muitos países, mas um efeito colateral atingiu o Brasil.

Com a necessidade de se pescar o tubarão inteiro, acreditava-se que a atividade ia se reduzir, pois o armazenamento de bichos de metros de comprimento poderia encarecer e dificultar o seu comércio. Mas a indústria viu no mercado brasileiro uma possibilidade de escoamento da carcaça. Hoje, o Brasil importa cerca de 25 mil toneladas de tubarão por ano, enquanto pesca outros 20 mil.

Enquanto a barbatana é o membro mais valioso do tubarão, a carcaça, popularmente chamada de cação, não costuma ser consumida em muitos países do mundo, pois a carne é considerada de baixa qualidade pelo seu risco de contaminação. Como o tubarão é um peixe de topo da cadeia alimentar, em seu corpo se acumula muitos poluentes, incluindo até mercúrio. Mas, por ser barato, seu consumo explodiu no Brasil. Índia, Austrália, México e Reino Unido são outros países que também consomem bastante "cação".

— Quase ninguém sabe que cação é tubarão. Então precisamos informar, e dizer como essa espécie está sendo afetada — explica Nathalie Gil, presidente da Sea Shepard, ONG de conservação da vida marinha, que destaca que o baixo preço do cação torna o alimento atrativo para compras públicas de prefeituras. — Muitas prefeituras optam pelo cação, que é mais barato, para estoque de merenda escolar.

Nas compras públicas, não é raro a fiscalização não conseguir identificar espécies ameaçadas em meio aos lotes. O mesmo acontece em lotes de exportação.

— Há muito mais venda de tubarão ilegal no Brasil do que a gente consegue identificar. Esforços estão aumentando, e o trabalho de análise da cadeia de abastecimento é fundamental. Mas ainda temos muitas exportações com aparente legalidade — disse Juliana Ferreira, diretora executiva da Freeland, ONG que combate o tráfico de animais silvestres no mundo.

Extinção pode afetar todo o ecossistema

Segundo os dados oficiais, um quarto da produção nacional de cação vem da pesca de atum por espinhel. O restante vem da pesca artesanal, que ainda predomina no país e também sofre atuação da pesca direcionada. Com a demanda em alta, a população de tubarões já vem sendo afetada. Na última atualização da lista oficial de espécies ameaçadas de extinção, do ICMBio, houve a inclusão de cinco tipos de tubarão, incluindo o mako. Recentemente, já vem sendo discutida até a possibilidade do tubarão azul, o mais abundante do país, ser inserido na listagem.

— Em 2018 foi convocada uma reunião pelo ICMBio para a avaliações de espécies. Na época foi apontado que o mako estava um pouco estranho do ponto de vista biológico, porque começou a apresentar sinais de sobrepesca, ou seja, diminuiu a quantidade de animal normalmente capturado, e muitos eram jovens — explica Rodrigo Mazzoleni, coordenador do Curso de Oceanografia da Univali e que acompanhou a primeira reunião a tratar do assunto, há cinco anos.

A maior preocupação sobre possível extinção dessas espécies, diz Mazzoleni, é que sua remoção do topo da cadeia alimentar gera um efeito dominó que vai desequilibrar todo o sistema. Ele cita, como exemplo, uma situação vivida na Austrália no fim da década de 70. Por causa dos recorrentes acidentes com surfistas, a comunidade resolveu organizar campeonatos de pescas de tubarão. Mas o resultado foi a eliminação de espécies que predavam polvos e, então, a população de polvo aumentou muito, e eles devastaram toda a atividade de maricultura (criação de ostra e mexilhão) do país.

Estudos mostram que a extinção de tubarões pode impactar todo ambiente oceânico, incluindo recife de coral e ilhas oceânicas, o que oferece grande risco ao Brasil, já que esses organismos são comuns no país.

*Estagiária sob supervisão de Carla Rocha


Fonte: O GLOBO