Autor de voto que levou questão do perfilamento racial ao STF, Sebastião Reis Júnior falou ao GLOBO sobre encarceramento, descriminalização das drogas e papel da Justiça

Rodeado por fotografias de presas trans que pendurou em seu gabinete após visitas a unidades carcerárias, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Sebastião Reis defende uma reflexão no Judiciário sobre o encarceramento em massa. Após um voto seu levantar o debate sobre racismo nas abordagens policiais, ele afirma que "já passou da hora" de este tipo de conduta ser proibida.

Ao julgar um recurso de um homem negro acusado de tráfico de drogas, Reis votou pela anulação da sentença e a nulidade das provas obtidas diante de uma abordagem policial enviesada. Mas foi voto vencido no STJ. A discussão, porém, foi parar no Supremo Tribunal Federal, que ainda analisa um recurso da defesa do réu.

— É preciso que haja parâmetros para as abordagens policiais. Não é aceitável que uma pessoa seja submetida a esse tipo de constrangimento em razão da sua cor de pele. Já passou da hora de o Judiciário dizer que isso não é permitido, e estabelecer critérios, regras, debater este assunto — afirma o ministro em entrevista ao GLOBO.

Conhecido por seu perfil progressista, o magistrado também deu decisões que suscitaram debate em temas como aborto e descriminalização de drogas. No início do mês, travou uma ação contra uma mulher acusada de aborto por discordar da conduta do médico, que comunicou o fato à polícia.

A seguir, trechos da entrevista:

A partir de um voto dado pelo senhor, o STF começou a julgar a validade do chamado “perfilamento racial” nas abordagens policiais.Por que o senhor acredita que provas obtidas assim deveriam ser consideradas ilícitas?

Em havendo uma abordagem racista, uma abordagem baseada no fator racial, será nula exatamente porque aquela aproximação da polícia se deu sem motivação concreta, sem motivação real. Essa subjetividade do conceito de "atitude suspeita" e tudo o que decorrer disso não pode ter validade. O Supremo pode vir a estabelecer balizas, critérios para as abordagens policiais. 

É preciso que haja parâmetros para as abordagens policiais. Não é aceitável que uma pessoa seja submetida a esse tipo de constrangimento em razão da sua cor de pele. Já passou da hora de o Judiciário dizer que isso não é permitido, e estabelecer critérios, regras, debater este assunto.

No caso das drogas, existe uma discussão no Supremo a respeito da descriminalização do uso da maconha que está parada há sete anos. Como avalia a questão?

É uma questão para se pensar, para se discutir como seria. Se vamos criminalizar só um tipo de droga, se vai ser descriminalizado o uso de drogas mais leve, ou não, se a intenção é diminuir o impacto do tráfico de droga. No Congresso existe um projeto de lei que foi apresentado por uma comissão presidida pelo Rogério (Schietti, também ministro do STJ) e que está engavetado. Eu não estou dizendo que tem que ser aquele projeto que tem que ser aprovado, mas que é preciso discutir esse assunto, porque eu acho que hoje já está claro que a política atual não dá certo.

A atual legislação sobre drogas?

Essa política de punir, prender o usuário de droga, não diminuiu a criminalidade. Não diminuiu o tráfico, pelo contrário. Então eu acho que nós temos que enfrentar essa questão. No STJ, nos processos que chegam até nós, a grande maioria das prisões é do pequeno traficante, o sujeito que está na esquina. Ou seja, o crime organizado, os grandes chefões do tráfico, esses ficam impunes.

Qual seria a solução?

Eu não tenho a resposta para esse problema, que é também de saúde pública. Mas realmente achar que a solução é prender um menino que foi pego com 20 gramas de cocaína, 20 gramas de maconha, eu acho que isso não vai resolver nada. 

Você vai estar dando mão de obra para o tráfico, a gente sabe disso muito bem. As organizações criminosas vão se aproveitar disso, você vai criar um problema na família, muitas vezes envolver mãe, esposa. E vamos ser francos, essa não é uma questão que piorou somente no último governo. O Brasil tem errado há anos na questão do enfrentamento às drogas.

Essa questão depende apenas do Judiciário?

É algo como uma mentalidade que eu ainda acho que predomina no mundo, uma forma de tratamento desses casos menores, essa ânsia de prender, de manter presas pessoas que nitidamente não representam um perigo para a sociedade. Talvez se o Judiciário um outro olhar para essa situação, poderia ajudar de alguma forma, mas não é possível que a solução nasça apenas no Judiciário.

E como classifica a repercussão que foi dada a outra decisão do senhor, de trancar uma ação penal contra uma mulher acusada de aborto após o médico comunicar a polícia?

A questão esse processo ninguém entrou no mérito do aborto, é preciso deixar muito claro isso. Ali, o "x" da questão é o problema do sigilo médico, ou seja, o médico não tinha o direito de fazer isso (quebrar o sigilo entre médico e paciente). 

Ele, por obrigação legal, tem que guardar as informações que ele recebe em razão da profissão. Não poderia fazer como ele fez, ou seja, a paciente foi até ele em razão de um aborto provocado, e com isso, ele denunciou à polícia. Não estamos entrando na questão do aborto.

A quebra do sigilo médico poderia ter outras consequências?

A própria a intenção da lei é proteger a pessoa. Porque imagina só se ela souber que amanhã ela pode ser vítima de alguma investigação em razão da ação do médico. A paciente vai pensar: "eu não vou procurar um médico". 

Então ela vai ficar restrita, em casa, passando mal, sangrando, podendo até morrer ou ter sequelas. É a situação que atinge não só um médico, né? É um médico, um psicólogo, a enfermeira, o padre. Ou seja, todos aqueles que em razão de do exercício de determinada profissão, têm acesso a informações privilegiadas, que devem ser protegidas.

A descriminalização do aborto deve ser analisada pelo Judiciário?

Esse é um tema que precisa ser enfrentado, eu acho que nós temos não só a questão do aborto, existem várias questões que devem ser analisadas pelo Judiciário e pelo Legislativo. Eu só sei que o que que não pode acontecer é o que está acontecendo hoje no Brasil, que em razão de preconceitos não se debate esses assuntos. 

Não dá mais. O mundo todo está debatendo aborto, descriminalização das drogas. Estados Unidos, Canadá, Europa, a América Latina toda está enfrentando essas questões.

No dia 8 de março, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) subiu à tribuna da Câmara dos Deputados com uma peruca e discursar contra mulheres trans. Levantamento do GLOBO identificou uma profusão de projetos de lei com ataques à comunidade LGBTQIAP+. O Judiciário está pronto para lidar com o combate à transfobia?

Nos depararmos, em 2023, com pronunciamentos deste tipo e ataques às pessoas apenas por sua orientação sexual é inadmissível. O Judiciário tem dado respostas e garantido direitos, como a questão do nome social, dos presídios de acordo com a identificação das pessoas trans. Então existe uma série de questões que vão provocando o assunto. E é evidente que mais cedo ou mais tarde a Justiça vai ter que enfrentar essas manifestações transfóbicas e preconceituosas.


Fonte: O GLOBO