Número crescente de mulheres chinesas está desafiando uma tradição de longa data que nega a elas os pagamentos do governo — Foto: Sim Chi Yin/The New York Times
Porto Velho, Rondônia - Era pouco depois das 10h quando mulheres que vieram de diferentes regiões reuniram-se em frente ao Escritório de Assuntos Rurais na província de Guangdong, no sul da China. Uma havia tirado a manhã de folga do trabalho. Outra era operadora de turismo, e uma terceira era recém-aposentada. O grupo, composto por nove mulheres, verificou seus documentos e depois entrou. Num escritório mal iluminado, elas confrontaram três funcionários e exigiram saber por que tinham sido excluídas dos pagamentos do governo, no valor de dezenas de milhares de dólares, que deveriam ser destinados a cada morador da aldeia.
— Eu tinha esses direitos ao nascer. Por que de repente os perdi? — questionou uma delas.
Esta era a questão que unia o grupo de moradoras da região. Elas se juntavam a um número crescente de mulheres rurais, em todo o país, que estão se organizando para enfrentar uma antiga tradição que nega a elas os direitos sobre a terra — tudo com base na pessoa com quem se casaram. Em grande parte da China rural, se uma mulher se casa com alguém de fora de sua aldeia, ela deixa de ser considerada membro daquela comunidade, mesmo que continue morando ali.
Isso significa que a assembleia da aldeia, um órgão de tomada de decisões tecnicamente aberto a todos os adultos, mas geralmente dominado por homens, pode negar a ela benefícios patrocinados pela aldeia, como seguro de saúde, além de dinheiro concedido aos moradores quando o governo toma posse de suas terras. Os homens permanecem elegíveis, independentemente de com quem se casem.
Agora, as mulheres estão entrando com processos judiciais e apresentando petições às autoridades, motivadas pela convicção de que deveriam ser tratadas de forma mais justa. Ao fazer isso, elas estão desafiando séculos de tradição que as definiram como apêndices dos homens: os seus pais antes do casamento, e seus maridos depois. Essa visão persistiu mesmo com a rápida modernização do país. As mulheres passaram a frequentar a escola e, por vezes, tornaram-se até mesmo as principais provedoras de suas famílias.
Elas também estão expondo uma lacuna entre as palavras do Partido Comunista no poder e as suas ações. Muitos tribunais, controlados pelo partido, se recusam a aceitar os processos das mulheres — e, mesmo quando elas obtêm decisões favoráveis, autoridades locais se recusam a aplicá-las, temendo a “agitação social”. As mulheres têm sido assediadas, espancadas ou detidas por defenderem seus direitos nesses casos. Pouco após o contato do New York Times para esta reportagem, muitas indicaram que não poderiam mais ter seu relato divulgado. Por razões de segurança, as mulheres citadas são mencionadas apenas por seus sobrenomes, e suas localizações exatas foram omitidas.
Cidades e desigualdade em expansão
As mulheres chinesas têm sofrido discriminação há muito tempo, mas as implicações financeiras dessa desigualdade tornaram-se mais evidentes após a rápida expansão da economia da China. À medida que o país adotou reformas de mercado a partir da década de 1980, o governo começou a tomar terras rurais para construir fábricas, ferrovias e centros comerciais. Em troca, os habitantes das aldeias recebiam indenizações, muitas vezes na forma de novos apartamentos ou certificados que lhes davam direito a dividendos provenientes da futura utilização das terras.
O governo determinou que as mulheres que são membros da aldeia recebessem uma compensação igual. Mas deixou a definição de “membros” para as assembleias da aldeia, lideradas por homens. E, para muitas dessas instituições, um grupo não se qualificava: as mulheres casadas com homens de outras regiões.
Não está claro a quantas mulheres foi negado o direito à terra por causa do casamento, mas o número aumentou à medida que a população se tornou mais móvel, com pessoas se casando entre províncias, e não apenas entre aldeias. Pesquisas apoiadas pelo governo indicam que até 80% das mulheres rurais não estão listadas nos documentos fundiários de suas aldeias. Isso dificulta a defesa de seus direitos em caso de disputas.
Durante décadas, mulheres nessa situação tiveram poucos recursos. Algumas aceitavam sua privação como algo normal. Mas há sinais de uma resistência silenciosa, à medida que essas mulheres se tornam mais instruídas e encontram mais maneiras de se conectar umas com as outras. O número de decisões judiciais envolvendo o termo “mulheres casadas” saltou de 450 em 2013 para quase 5 mil há cinco anos, segundo dados oficiais. Muitas aldeias, no entanto, seguem a tradição.
Rebatendo uma ação judicial de 2019, uma aldeia em Nanning, uma cidade no sudoeste da China, alegou que mulheres que se casaram com pessoas de fora não viviam mais da terra, e, portanto, não se qualificavam como membros da aldeia. Homens que saem não são julgados por esse padrão. Na província de Shandong, no leste da China, outra aldeia foi mais direta em sua resposta a uma ação judicial de 2022. “Mulheres casadas com pessoas de outras regiões não recebem nossos benefícios de propriedade”, disse os autos do processo.
Também não há estimativas definitivas das perdas financeiras que as mulheres sofreram. Mas, especialmente nas áreas costeiras prósperas, as somas podem ser enormes. Na cidade portuária de Ningbo, os apartamentos negados às mulheres casadas durante as demolições de aldeias em 2022 poderiam valer mais de 550 mil dólares (R$ 3 milhões), de acordo com documentos oficiais e os preços médios de imóveis na região. Mulheres que não conseguem provar seus direitos sobre a terra também têm mais dificuldade para investir ou conseguir empréstimos para iniciar negócios, conforme observado por estudiosos.
Consciência crescente
Uma das primeiras províncias a se urbanizar, Guangdong também viu algumas das mobilizações mais ativas das mulheres. Na cidade, havia sinais claros de transformação econômica. Uma estação de trem de alta velocidade fica ao lado de exuberantes campos de arroz que antes sustentavam a economia local. As casas de vilarejo de dois andares deram lugar a complexos de apartamentos fechados. Na sala de estar de uma dessas mulheres, várias outras estavam reunidas para planejar a visita ao escritório de assuntos rurais no dia seguinte.
Uma das presentes era uma mulher de sobrenome Ma. Sua aldeia começou a distribuir pagamentos há várias décadas, mas Ma parou de recebê-los em 1997, depois de ter se casado com um homem de outra região. Mesmo quando ela se divorciou e voltou para casa alguns anos depois, seus direitos continuaram sendo negados. Sem experiência com a lei, ela não sabia a quem pedir ajuda, e outros moradores a acusaram de tentar reivindicar algo que não lhe pertencia. Seus irmãos disseram para ela não fazer alarde. Ela então comprou uma cópia do código civil da China para se educar. Telefonou e visitou escritórios do governo, embora eles se recusassem a aceitar o seu caso.
— Se eu esperasse até que outros se manifestassem, eu não teria nada — disse.
Então, gradualmente, mais mulheres começaram a tomar medidas semelhantes — não apenas em Guangdong, mas em toda a China. Às vezes, encontraram autoridades compreensivas, e algumas venceram seus casos. À medida que as notícias se espalhavam, Ma e várias outras dezenas de mulheres da região encontraram-se por meio do boca a boca. Elas não tinham uma líder, e as reuniões eram esporádicas. Elas representavam apenas uma fração das milhares de mulheres que, segundo suas estimativas, tinham sido privadas dos direitos à terra em suas aldeias. Ainda assim, conseguiram pressionar os tribunais locais. O caso de Ma foi aceito em 2020, assim como os de outras mulheres.
— Agora, muitos tribunais têm tantos casos que estão sobrecarregados — disse Li, outra mulher que estava na sala de estar.
Li permaneceu em sua aldeia depois de se casar com um operário de fábrica da província de Hunan, a noroeste, que ela conheceu enquanto ele trabalhava nas proximidades. Ela agora equilibra seu trabalho fazendo rolinhos de arroz com visitas ao tribunal, onde está processando cerca de US$ 7 mil (R$ 39 mil) em pagamentos que lhe foram negados desde seu casamento, cinco anos atrás.
As mulheres mais velhas passaram anos buscando o caminho certo para suas queixas, mas as mais jovens disseram que ouvir sobre as experiências de outras lhes deu uma espécie de mapa. Uma mulher na casa dos 20 anos, de sobrenome Huo, processou sua aldeia assim que soube que havia sido excluída em 2020. Ela descobriu quando, após o nascimento de seu primeiro filho, o hospital disse que ela não tinha mais o seguro de saúde patrocinado pela comunidade.
As histórias de Li e Huo refletem o maior poder de decisão que as mulheres mais jovens têm sobre onde devem viver. Tradicionalmente, as mulheres se mudavam para as casas dos maridos; gerações mais velhas de mulheres casadas com pessoas de outras regiões só voltavam para suas aldeias depois do divórcio ou da morte do marido. As mais jovens adotaram a ideia de trazer seus maridos para suas próprias aldeias, em parte para afirmar sua independência.
— É o plano de reserva de uma mulher — disse Huo, que agora trabalha na construção civil. — Caso algo aconteça, pelo menos você tem sua própria casa.
Fonte: O GLOBO
Durante décadas, mulheres nessa situação tiveram poucos recursos. Algumas aceitavam sua privação como algo normal. Mas há sinais de uma resistência silenciosa, à medida que essas mulheres se tornam mais instruídas e encontram mais maneiras de se conectar umas com as outras. O número de decisões judiciais envolvendo o termo “mulheres casadas” saltou de 450 em 2013 para quase 5 mil há cinco anos, segundo dados oficiais. Muitas aldeias, no entanto, seguem a tradição.
Rebatendo uma ação judicial de 2019, uma aldeia em Nanning, uma cidade no sudoeste da China, alegou que mulheres que se casaram com pessoas de fora não viviam mais da terra, e, portanto, não se qualificavam como membros da aldeia. Homens que saem não são julgados por esse padrão. Na província de Shandong, no leste da China, outra aldeia foi mais direta em sua resposta a uma ação judicial de 2022. “Mulheres casadas com pessoas de outras regiões não recebem nossos benefícios de propriedade”, disse os autos do processo.
Também não há estimativas definitivas das perdas financeiras que as mulheres sofreram. Mas, especialmente nas áreas costeiras prósperas, as somas podem ser enormes. Na cidade portuária de Ningbo, os apartamentos negados às mulheres casadas durante as demolições de aldeias em 2022 poderiam valer mais de 550 mil dólares (R$ 3 milhões), de acordo com documentos oficiais e os preços médios de imóveis na região. Mulheres que não conseguem provar seus direitos sobre a terra também têm mais dificuldade para investir ou conseguir empréstimos para iniciar negócios, conforme observado por estudiosos.
Consciência crescente
Uma das primeiras províncias a se urbanizar, Guangdong também viu algumas das mobilizações mais ativas das mulheres. Na cidade, havia sinais claros de transformação econômica. Uma estação de trem de alta velocidade fica ao lado de exuberantes campos de arroz que antes sustentavam a economia local. As casas de vilarejo de dois andares deram lugar a complexos de apartamentos fechados. Na sala de estar de uma dessas mulheres, várias outras estavam reunidas para planejar a visita ao escritório de assuntos rurais no dia seguinte.
Uma das presentes era uma mulher de sobrenome Ma. Sua aldeia começou a distribuir pagamentos há várias décadas, mas Ma parou de recebê-los em 1997, depois de ter se casado com um homem de outra região. Mesmo quando ela se divorciou e voltou para casa alguns anos depois, seus direitos continuaram sendo negados. Sem experiência com a lei, ela não sabia a quem pedir ajuda, e outros moradores a acusaram de tentar reivindicar algo que não lhe pertencia. Seus irmãos disseram para ela não fazer alarde. Ela então comprou uma cópia do código civil da China para se educar. Telefonou e visitou escritórios do governo, embora eles se recusassem a aceitar o seu caso.
— Se eu esperasse até que outros se manifestassem, eu não teria nada — disse.
Então, gradualmente, mais mulheres começaram a tomar medidas semelhantes — não apenas em Guangdong, mas em toda a China. Às vezes, encontraram autoridades compreensivas, e algumas venceram seus casos. À medida que as notícias se espalhavam, Ma e várias outras dezenas de mulheres da região encontraram-se por meio do boca a boca. Elas não tinham uma líder, e as reuniões eram esporádicas. Elas representavam apenas uma fração das milhares de mulheres que, segundo suas estimativas, tinham sido privadas dos direitos à terra em suas aldeias. Ainda assim, conseguiram pressionar os tribunais locais. O caso de Ma foi aceito em 2020, assim como os de outras mulheres.
— Agora, muitos tribunais têm tantos casos que estão sobrecarregados — disse Li, outra mulher que estava na sala de estar.
Li permaneceu em sua aldeia depois de se casar com um operário de fábrica da província de Hunan, a noroeste, que ela conheceu enquanto ele trabalhava nas proximidades. Ela agora equilibra seu trabalho fazendo rolinhos de arroz com visitas ao tribunal, onde está processando cerca de US$ 7 mil (R$ 39 mil) em pagamentos que lhe foram negados desde seu casamento, cinco anos atrás.
As mulheres mais velhas passaram anos buscando o caminho certo para suas queixas, mas as mais jovens disseram que ouvir sobre as experiências de outras lhes deu uma espécie de mapa. Uma mulher na casa dos 20 anos, de sobrenome Huo, processou sua aldeia assim que soube que havia sido excluída em 2020. Ela descobriu quando, após o nascimento de seu primeiro filho, o hospital disse que ela não tinha mais o seguro de saúde patrocinado pela comunidade.
As histórias de Li e Huo refletem o maior poder de decisão que as mulheres mais jovens têm sobre onde devem viver. Tradicionalmente, as mulheres se mudavam para as casas dos maridos; gerações mais velhas de mulheres casadas com pessoas de outras regiões só voltavam para suas aldeias depois do divórcio ou da morte do marido. As mais jovens adotaram a ideia de trazer seus maridos para suas próprias aldeias, em parte para afirmar sua independência.
— É o plano de reserva de uma mulher — disse Huo, que agora trabalha na construção civil. — Caso algo aconteça, pelo menos você tem sua própria casa.
Fonte: O GLOBO
0 Comentários