Para indústria, composição deve ser a mais abrangente possível. Pesquisadores e parte do governo defendem que a alíquota zero deve ser mais restrita e não deve incluir ultraprocessados

A Reforma Tributária aprovada na Câmara prevê a criação de uma cesta básica nacional com alíquota zero. A proposta sequer começou a tramitar no Senado e o tema deve ser definido posteriormente por lei complementar, mas a disputa por um lugar na lista que vai compor o prato do brasileiro já começou.

Representantes da indústria de alimentos defendem a composição mais abrangente possível. Organizações de defesa do consumidor, pesquisadores e parte do governo entendem que a alíquota zero deve ser mais restrita e não deve incluir ultraprocessados e alimentos que não fazem parte da rotina da maior parte da população, como filé mignon e salmão.

No modelo atual, a cesta básica é isenta de impostos federais. Mas os estados definem quais produtos terão incidência menor de ICMS. Na prática, isso faz com que o país tenha 27 cestas básicas, com itens que vão da rapadura mista de amendoim ao queijo petit-suisse .

'Não cabe ao Poder Público'

A inclusão da alíquota zero da cesta básica foi uma das mudanças incluídas de última hora no texto. A alteração foi considerada uma vitória para o empresariado, que agora busca emplacar a definição de categorias abrangentes como “carne”, “peixe” e “massas alimentícias”. Um dos argumentos é que a descrição particular de cada categoria aumentaria ainda mais a complexidade do sistema tributário.

Porteira da alíquota zero

Paula Johns, diretora da ACT Promoção da Saúde, organização que atua para promoção de políticas de saúde pública, afirma que a adoção de categorias como “massas alimentícias” é abrangente demais.

— Uma coisa é falar de massa alimentícia, outra, de macarrão instantâneo — afirma Paula, que defende que a cesta siga os parâmetros do Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, com itens e subitens discriminados de forma clara.

Já a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) defende o modelo de cesta básica ampla. Ela entregou ao Ministério da Fazenda uma proposta com 38 componentes que deveriam contar com alíquota zero. A lista inclui categorias como queijo, peixes, carnes bovinas e carnes suínas, sem especificar corte, categoria de pescado ou tipo de queijo.

Rodrigo Segurado, vice-presidente de Ativos Setoriais da entidade, diz que a ideia é “fugir do modelo anterior, que especificava nome e sobrenome, CPF e RG de cada pedaço de alimento”, mesmo que isso signifique ampliar a lista de produtos isentos de impostos e colocar na lista itens de maior valor.

— Não cabe ao Poder Público, à Constituição e muito menos à legislação, com uma lei complementar, definir se um indivíduo deve comer a parte A, B ou C da carne. Ele deve comprar a parte que ele quer comprar ou que ele puder comprar — defende Segurado, que diz que a próxima batalha do setor é, no Congresso, fazer prevalecer essa tese.

Essa é a defesa também da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), que representa indústria do frango, da carne suína e de ovos. "O setor entende que todos os alimentos com base em peixes e demais proteínas de origem animal deverão constar na cesta básica nacional", informou o grupo, em nota.

Com o agronegócio, empresas do setor já tiveram vitórias na Câmara. A própria aprovação da alíquota zero para a cesta básica, foi uma delas. O projeto ideal para o Ministério da Fazenda era aquele que propunha o cashback, com uma devolução de impostos a determinadas camadas da população, incluindo os de consumo básico. Com isso, segundo técnicos da Fazenda, seria possível fazer uma isenção de alimentos direcionada à população que mais precisa.

O setor destaca outra alteração de última hora, mas no chamado Imposto Seletivo — que será aplicado a produtos considerados nocivos à saúde. Um dispositivo definiu que itens com alíquota reduzida, incluindo “alimentos para consumo humano”, devem ficar de fora do Imposto Seletivo. Se a redação for mantida, especialistas dizem que ela abre brecha a que bebidas açucaradas ou carnes embutidas não sejam alvo da tributação.

Camarão e lagosta?

Para a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), a mudança foi uma vitória. A organização defende que a classificação de alimentos como ultraprocessados é frágil e que não existem alimentos "bons" ou "ruins". Eles esperam garantir que a exceção do Imposto Seletivo aprovada na Câmara permaneça no Senado.

João Dornellas, presidente executivo da ABIA, diz que a definição de alimentos ultraprocessados vêm sendo "cada vez mais questionada no mundo" e que esses produtos fazem parte da dieta dos brasileiros.

Arnoldo de Campos, economista da AGMAAC Soluções e consultor das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, argumenta que a indústria vai pleitear que todo tipo de alimento entre na lista, mas que ela precisa ter foco :

— Hoje, as pessoas admiram a fruta na quitanda, mas é muito mais barato comprar macarrão instantâneo. A gente precisa usar a política tributária como instrumento de política pública.

Essa é a posição também do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC). Para Ana Maya, especialista do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto, é preciso adotar critérios, por exemplo, para exclusão explícita de carnes ultraprocessadas, como presunto, salsicha, mortadela, linguiça, salame, bacon, peito ou blanquet de peru.

— A lista precisa ser composta por alimentos que fazem parte da cultura alimentar do brasileiro e que são adequados, saudáveis e sustentáveis — afirma a pesquisadora, que defende que o tema seja endereçado também a partir de processos de participação com a sociedade civil, academia e Estado.

Já a Associação Brasileira da Piscicultura (Peixe BR) defende que a lista única inclua todos os tipos de pescados produzidos no país, excluindo importados e abrangendo também crustáceos como camarão, lagosta, caranguejo e siri.

— Deveria entrar pescado e ponto final. Nós temos mais de 300 espécies de peixes — diz Francisco Medeiros, presidente-executivo da PeixeBR.

Governo estuda lista mais restrita

No Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, um grupo de técnicos e especialistas vem se debruçando para formular uma proposta de definição de alimentos que entrariam na cesta básica nacional. O objetivo é que ela considere aspectos regionais, preços e consumo alimentar no Brasil, com a exclusão de alimentos ultraprocessados e incentivo a itens in natura.

O grupo foi formado ainda no início do governo, mas os trabalhos se aceleraram com a tramitação da reforma tributária, segundo participantes do núcleo. A proposta, por enquanto, está orientada por sete grupos, como "cárneos especificados" e "hortícolas, frutas e ovos", segundo rascunho ao qual O GLOBO teve acesso.

Para cada um deles, estão sendo estudados subgrupos específicos, incluindo exceções que devem ficar de fora, como enlatados e massas ultraprocessadas.

O tributarista Heleno Torres, professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP, alerta que uma lista detalhada por itens e subitens, como corte de carne que entra ou não, pode trazer riscos para o mercado interno.

Ele lembra que, como texto da reforma garante desoneração completada para exportação, as empresas teriam um incentivo maior para vender produtos fora da alíquota zero para outros países.

— Se você tem uma imunidade de partida e não tem uma imunidade no mercado interno, corremos o risco de uma falência no mercado interno. O combate à fome pode ficar prejudicado se houver imunidade tributária para exportação e não ter um equivalente para os produtos internos — afirma Torres.

Para o Ministério da Fazenda, uma das preocupações é o impacto que a abrangência de exceções traria na Reforma Tributária, com risco de que a alíquota padrão seja mais alta. Oficialmente, a pasta ainda não instituiu um Grupo de Trabalho para se debruçar especificamente sobre a cesta básica nacional. O tema, no entanto, está sendo discutido extra-oficialmente por um grupo de técnicos, segundo apurou O GLOBO.

O economista-chefe da LCA Consultores, Bráulio Borges, diz que a perspectiva, com a alíquota zero, é de redução do preço da cesta básica em relação aos valores atuais, já que o sistema atual prevê tributação desses itens pelo ICMS. Para ele, no entanto, a desoneração completa da cesta pode ser uma política cara e pouco focalizada:

— Vai ter queda do preço, mas, como política pública vai ser ruim porque vai ser pouco focalizada. Em termos proporcionais, ela vai beneficiar muito menos os pobres, que são aqueles que mais precisam de desoneração. Em termos absolutos, ela vai beneficiar a classe média e a classe média alta.

Um técnico do Ministério da Fazenda ouvido pelo GLOBO diz que outro problema da alíquota zero para cesta é questão do desconto chegar de fato ao consumidor. Ele defende que, com o cashback, além de uma política focalizada, seria possível garantir que o benefício estaria em mãos de quem precisa.

No sistema atual, a flexibilização de uma definição de cesta básica já traz distorções. Em 2019, o então Ministério da Economia chegou a elaborar uma lista de produtos considerados de cesta básica e que deveriam ser reonerados, como queijos brie e camembert, chantilly, leite condensado, salmão e capuccino. Os custos no orçamento para essas excessões, segundo estimou o estudo, foi de R$ 1,17 bilhão.


Fonte: O GLOBO