Ex-presidente dos EUA repete mentira de que eleição de Biden foi fraudada ao voltar a aparecer na rede americana, após hiato 7 anos, apenas um dia depois de ter sido considerado culpado em um caso de abuso sexual e difamação

O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump voltou ser entrevistado em um programa ao vivo de uma grande rede americana após quase três anos de aparições restritas a canais simpáticos, como os de propriedade do magnata Rupert Murdoch. 

Diante de uma plateia formada por eleitores republicanos e independentes com inclinação ao partido, em New Hampshire, Trump repetiu a mentira de que a eleição de 2020 foi fraudada, classificou o dia 6 de janeiro de 2021 — quando o Capitólio foi invadido por trumpistas radicais insuflados por ele — como um "bonito dia", afirmou que a guerra na Ucrânia não teria começado se ele fosse presidente e citou o Brasil para defender o armamento da população como resposta a violência armada no país.

A menção ao Brasil aconteceu após um apoiador na plateia questionar o que o ex-presidente pretendia fazer para defender o direito constitucional dos americanos de possuírem armas de fogo. Após defender uma posição armamentista, Trump foi indagado pela apresentadora da CNN Kaitlan Collins se ele não imporia restrições ao acesso a armas diante do aumento de ataques a tiro em massa, incluindo em escolas.

— O Brasil tem uma [política de armas[ muito restritiva. [Os números de] homicídios eram incríveis. Entravam nas casas das pessoas e as matavam. Eles não tinham nenhuma proteção. O ex-presidente deles disse 'vão lá e comprem armas', e eles foram lá e compraram armas, e os números [de violência armada] caíram muito, porque eles tinham segurança — afirmou Trump, também sem apresentar provas.

O presidente também afirmou que a culpa pelo aumento da violência armada não era das armas ou das munições, mas sim das pessoas por detrás delas, e defendeu responder ao aumento de ataques em escolas com o enrijecimento do controle, incluindo os professores na segurança — o que, para setores da direita americana, significa armar professores em sala de aula.

Fraude eleitoral e invasão do Capitólio

A entrevista mediada e transmitida pela CNN americana — onde Trump não aparecia ao vivo desde 2016 e que ele acusou de ser difusora de fake news — começou com o ex-presidente reafirmando a mentira de que as eleições vencidas por Joe Biden, em 2020, foram fraudadas.

— Quando você olha para o resultado da eleição e olha para o que aconteceu durante aquela eleição, a não ser que você seja uma pessoa muito estúpida, você entende o que aconteceu — disse Trump, em sua primeira resposta à apresentadora da CNN Kaitlan Collins, acrescentando: — A maioria das pessoas entende o que aconteceu. Aquela foi uma eleição fraudada.

O principal pré-candidato do Partido Republicano para 2024 também culpou a suposta fraude pelos acontecimentos de 6 de janeiro de 2021, quando uma multidão furiosa de trumpistas, incentivada por ele, invadiu o Congresso americano para impedir uma sessão de certificação da vitória de Biden, num episódio de violência que causou a morte de cinco pessoas.

— Eu nunca falei com uma multidão tão grande quanto aquela — disse Trump — Aquilo aconteceu porque eles pensaram que a eleição foi fraudada. E eles estavam orgulhosos. Eles tinham amor em seus corações. Aquele foi inacreditável e foi um bonito dia.

O ex-presidente ainda afirmou que muitos dos presentes provavelmente estiveram nos protestos de 6 de janeiro e que pretendia perdoar "boa parte" dos revoltosos que invadiram o Capitólio se voltar a ocupar a Casa Branca.

Guerra na Ucrânia

No segundo bloco do debate mediado, Trump afirmou que a guerra na Ucrânia nunca teria acontecido se ele fosse presidente dos Estados Unidos e criticou a condução dos esforços pró-Ucrânia neste momento.

— Nós não temos munição para nós mesmos, nós estamos enviando [para Kiev] demais — disse o ex-presidente, acrescentando: — Eu tenho que começar dizendo, e não importa mais, que se eu fosse presidente, isso nunca teria acontecido [a guerra na Ucrânia]. Até democratas admitem isso. Putin sabe, que isso nunca teria acontecido.

Trump afirmou que Putin cometeu "um grande erro" ao autorizar a invasão à Ucrânia, mas se negou a afirmar que queria que a Ucrânia vencesse a guerra: — Eu quero que eles parem de morrer. Ele também se negou a dizer se achava que o presidente russo é um criminoso de guerra, afirmando ser algo que deveria ser tratado "depois".

O ex-presidente também criticou a grande quantidade de recursos comprometidas pelos EUA na ajuda militar com a Ucrânia, em comparação aos valores enviados pelos aliados da Otan, que, segundo ele, são "os mais beneficiados" pelo empoderamento da Ucrânia.

Condenação por abuso sexual e difamação

Considerado culpado na terça-feira por um júri federal em Manhattan de ter abusado sexualmente e difamado a escritora E. Jean Carroll em meados dos anos 1990, Trump voltou a repetir não conhecê-la, embora, durante o julgamento, foram apresentadas provas documentais, como uma foto dos dois conversando amigavelmente em uma época próxima aos fatos.

— Não tenho ideia de quem é essa mulher — disse — está é uma história falsa.

Documentos secretos e irritação

Na reta final da entrevista, o presidenciável se irritou ao ser questionado sobre os documentos secretos apreendidos pelo FBI em sua mansão em Mar-a-Lago, na Flórida — um dos casos jurídicos com maior potencial de prejudicá-lo — e chamou a apresentadora da CNN de "desagradável", o que rendeu aplausos de seus apoiadores.

Sobre os documentos, o ex-presidente mudou a narrativa que vinha mantendo até agora, de que os documentos foram levados por engano ao fim de seu mandato.

— Eu peguei os documentos, eu sou autorizado a isso — disse Trump, tentando se valer de uma argumentação jurídica de que os atos do presidente por si só podem retirar ou colocar documentos em sigilo.

Trump contrariou declarações anteriores de que os documentos encontrados pelo FBI foram levados para sua propriedade particular por engano, incluindo uma carta enviada por seus advogados ao Congresso com essa versão, e disse ter retirado os documentos ele mesmo, o que tornaria os documentos imediatamente

Debate na mídia

A programação voltada para o ex-presidente nesta quarta provocou um debate sobre a cobertura jornalística e o tempo de tela dedicado a Trump pela mídia, principalmente após a condenação civil por abuso sexual e difamação e as correntes acusações criminais contra ele.

Críticos questionaram a CNN forneceria uma plataforma ao vivo para alguém que defendeu manifestantes no Capitólio dos EUA e ainda insiste que a eleição de 2020 foi fraudada.

— A CNN ainda vai fazer uma entrevista com um predador sexual duas vezes acusado de insurreição? — perguntou Alexander Vindman, coronel do Exército que foi testemunha no primeiro julgamento de impeachment de Trump.

Porém, apesar das condenações e acusações contra o ex-presidente e seu papel nos eventos de janeiro de 2021, Trump também é, no momento, o candidato republicano com maior votação na campanha presidencial de 2024 e o líder de fato de seu partido.

— Então chega de programas políticos ao vivo, porque os políticos podem ser desagradáveis? Porque os políticos podem contar mentiras? — disse o ex-âncora Ted Koppel em uma entrevista. —Não tenho certeza de que as organizações de notícias devam necessariamente fazer julgamentos ideológicos. Ele é um objeto legítimo de atenção da mídia? Pode apostar que sim.

Em entrevista a CNBC, na semana passada, o CEO da Warner, grupo detentor da CNN nos EUA, respondeu que era preciso "ouvir às duas vozes" em um país "dividido" ao ser questionado sobre o programa ao vivo com Trump.

—Quando fazemos política, precisamos representar os dois lados. Acho que é importante para a América.

Antes de ser vendida ao grupo Warner, a CNN foi criticada em 2016 por dar mais tempo de tela a Trump durante as primárias republicanas daquele ano — a empresa admitiu ter exagerado na dose posteriormente. Mas nos anos seguinte, Trump difamou o canal, chegando a barrar o correspondente da rede na Casa Branca.

Joy Reid, âncora da rival MSNBC, apontou o evento desta quarta-feira como "uma tentativa da CNN de se empurrar para a direita e se tornar atraente e 'mostrar a barriga' para o MAGA". Uma pesquisa do YouGov no mês passado descobriu que a CNN era a fonte de mídia mais polarizadora do país, entre as principais emissoras, com a maior diferença entre a parcela de democratas que confia nela e a parcela de republicanos que não confia.

Mas Trump e a CNN não estão exatamente reconciliados. O ex-presidente ainda tem um processo pendente de difamação de US$ 475 milhões (R$ 2,3 bilhões) contra a rede.

Em um comentário no Truth Social na terça-feira, Trump disse aos apoiadores que a CNN estava “legalmente desesperada para obter aquelas audiências fantásticas (TRUMP!) Mais uma vez”. Ele acrescentou: “Pode ser o começo de uma CNN nova e vibrante, sem mais notícias falsas, ou pode se transformar em um desastre para todos, inclusive para mim. Vamos ver o que acontece?".


Fonte: O GLOBO