Mais de 180 pessoas morreram no país em decorrência do conflito desde sábado, segundo estimativas das Nações Unidas

O Exército do Sudão e o grupo paramilitar sudanês Forças de Apoio Rápido (FAR) chegaram a um acordo de cessar-fogo nesta segunda-feira, em meio a uma disputa de poder pelo controle do país entre dois generais que já deixou ao menos 185 mortos e mais de 1.800 feridos, segundo estimativas das Nações Unidas. A resolução tem validade de 24 horas a partir das 18h de hoje (13h em Brasília).

Segundo relatos de correspondentes da Al Jazeera, os confrontos cessaram nas áreas distantes do centro da capital, Cartum, e as lojas voltaram a receber clientes, embora ainda haja interrupções no fornecimento de água e energia. Ainda assim, sem um mecanismo para monitorar o cessar-fogo, grupos humanitários e equipes médicas temem que os combates possam recomeçar.

O chefe de ajuda humanitária da ONU, Martin Griffiths, por sua vez, disse que os trabalhadores humanitários e as instalações humanitárias continuavam sendo alvos de ataques após o cessar-fogo.

"Continuamos recebendo relatos de ataques e violência sexual contra trabalhadores humanitários. Isso é inaceitável e deve parar”, publicou Griffith no Twitter, acrescentando que o escritório de ajuda humanitária da ONU no sul de Darfur (oeste do país) também foi saqueado na segunda-feira.

As condições humanitárias em Cartum são "catastróficas", o que teria levado os lados beligerantes a concordarem com o cessar-fogo, segundo o analista político Yasser Abdullah.

— Em quatro dias, a situação desmoronou completamente em Cartum. As pessoas não encontram água para quebrar o jejum [durante o Ramadã, período sagrado para os muçulmanos] — disse o especialista à Al Jazeera, pedindo às autoridades que aproveitem a pausa nos combates para consertar as instalações de água e eletricidade que foram bombardeadas, já que, segundo ele, "a duração da trégua não é suficiente para retirar as pessoas dos locais onde estão presas".

O Sudão vive desde sábado um cenário de caos, em meio a um violento combate pelo controle do país entre dois generais rivais, o comandante do Exército, Abdel Fatah al-Burhan, líder de fato do país desde 2021, e seu número dois, Mohamed Hamdan Daglo, conhecido como "Hemedti", comandante das Forças de Apoio Rápido (FAR), um grupo paramilitar.

Al-Burhan e Daglo foram aliados no golpe de Estado de 2021 — que derrubou o primeiro-ministro Abdalla Hamdok e interrompeu um processo democrático iniciado no país dois anos antes — mas se tornaram inimigos públicos nos últimos meses. As tensões entre o exército e as FAR aumentaram à medida que se aproximava o prazo para a formação de um governo civil, focado na espinhosa questão de como o grupo paramilitar deveria ser reintegrado às forças armadas regulares.

A disputa acontece quatro anos depois dos protestos no Sudão terem derrubado o ditador Omar al-Bashir, que comandou o país por três décadas, impulsionando movimentos similares em outras partes da África e do mundo árabe.

Apelos internacionais

Reunidos no Japão, os ministros das Relações Exteriores do G7, o grupo das sete maiores economias globais, exortaram em sua declaração final "a parar imediatamente a violência" e "devolver o poder civil ao Sudão", depois que explosões voltaram a abalar Cartum mais cedo nesta terça-feira, com os aviões do general al-Burhan tentando conter o ataque de veículos blindados do general Daglo.

O apelo do G7 se juntou aos da ONU e dos Estados Unidos para acabar com as hostilidades, mas os combates continuam. O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, enfatizou em conversas com os dois generais em conflito "a urgência de alcançar um cessar-fogo".

"Estamos muito preocupados com os combates que afetam áreas densamente povoadas. As pessoas estão se refugiando em suas casas", disse, em nota, o chefe da delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Sudão, Alfonso Verdú Pérez. "Pedimos que todas as partes facilitem o trabalho das organizações humanitárias para que possamos ajudar quem precisa."

As negociações para um cessar-fogo começaram na segunda-feira e o general Daglo chegou a anunciar no Twitter, na manhã desta terça, que havia aprovado "um cessar-fogo de 24 horas", mas o exército negou no Facebook, alegando que era "uma declaração da rebelião destinada a esconder sua derrota iminente".

Os habitantes permanecem em suas casas, sem eletricidade e água encanada, e suas reservas de alimentos estão perto do fim. Os poucos mercados que estão abertos avisaram que não vão conseguir prosseguir com as atividades por muito tempo sem abastecimento. O esgotamento ameaça os habitantes da capital.

— Não dormimos há quatro dias — disse Dallia Mohamed Abdelmoniem, de 37 anos, à AFP, acrescentando que permaneceu trancada em casa com sua família por medo dos constantes bombardeios e confrontos de rua que abalaram a capital nos últimos quatro dias.

Hospitais em apuros

Pelo menos dois hospitais da capital foram esvaziados "enquanto foguetes e balas atingiam suas paredes", alertaram os médicos, que afirmam ter ficado sem bolsas de sangue e suprimentos médicos. Além disso, inúmeras ONGs e agências da ONU suspenderam suas atividades devido aos saques e "violações graves" que ocorreram contra seus funcionários.

Na segunda-feira, um comboio diplomático dos Estados Unidos foi alvejado e o embaixador da União Europeia foi atacado em sua residência em Cartum. Três funcionários do Programa Mundial de Alimentos foram mortos e estoques de ajuda foram saqueados em Darfur (oeste).

A ONU contabiliza 1.800 feridos, embora muitas pessoas tenham dificuldade em chegar aos hospitais por medo de balas perdidas ou de bombardeios militares e paramilitares em áreas residenciais.

A Cruz Vermelha e a Organização Mundial da Saúde (OMS) pediram nesta terça-feira às partes em guerra no Sudão que garantam o acesso à ajuda humanitária para as pessoas necessitadas.

— Milhares de voluntários estão prontos, aptos e treinados para prestar serviços humanitários. Infelizmente, devido à situação atual, eles não estão em condições de se deslocar — disse o chefe da delegação da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, Farid Aiywar, a jornalistas em Genebra por videoconferência em Nairóbi. 

— Temos ambulâncias, pessoas capazes de prestar primeiros socorros e apoio psicossocial, mas isso não será possível até que os corredores humanitários sejam garantidos por todas as partes. As organizações humanitárias sentem-se muito frustradas [por não poderem fazer o seu trabalho].

Em Darfur, reduto do general Daglo, a organização Médicos Sem Fronteiras disse que em três dias recebeu 183 feridos em seu último hospital funcional. "A maioria era civil, muitos deles crianças", segundo a ONG.

Médicos e organizações humanitárias alertaram que em algumas áreas de Cartum a eletricidade e a água estão cortadas e que há apagões nas salas de cirurgia. Os pacientes e suas famílias "não têm comida nem água", declarou uma rede pró-democrática de médicos.

"Burhan está bombardeando civis, vamos caçá-lo e levá-lo à Justiça", afirmou o general Daglo no Twitter em inglês, na segunda-feira. Já o Exército afirmou no Facebook que se aproxima o momento da vitória final.


Fonte: O GLOBO