Premier se vê em um impasse entre aliados de extrema direita e a ira pública com sua proposta de aumentar o controle do governo sobre o Judiciário

Há pouco mais de um ano, parecia que a carreira política de Benjamin Netanyahu, o líder mais longevo de Israel, estava praticamente arruinada. Fora do poder, lutava para se manter relevante. O Ministério Público havia oferecido um acordo que poria fim a seu julgamento por corrupção e lhe possibilitaria driblar uma possível pena de prisão. Em troca, precisaria deixar a política por sete anos.

As negociações se esfacelaram, o julgamento continua e Netanyahu, que nega ter cometido quaisquer irregularidades, terminou 2022 como primeiro-ministro pela terceira vez — já havia ocupado o cargo de 1996 a 1999, antes dos 12 anos ininterruptos de 2009 a 2021. Consolidou sua reputação como um mágico capaz de escapar de qualquer camisa de força política.

Na noite de segunda, tentou uma manobra igualmente hábil. Após impulsionar por semanas uma reforma judicial amplamente controversa, que virou do avesso a sociedade israelense, Netanyahu buscou outro truque de escapismo.

Depois de um dia de protestos maciços, greve geral e negociações de bastidores, o premier anunciou que a reforma seria adiada ao menos até o fim do recesso parlamentar de Páscoa, que começa no dia 2 e vai até 30 de abril. A decisão abre uma fresta para negociar um meio-termo com seus opositores e permite que sua coalizão de extrema direita e ultraconservadores religiosos sobreviva até ao menos a próxima crise.

Superficialmente, é um ato de malabares como aqueles em que o premier sempre triunfou. Pode ser, contudo, o mais complexo que já realizou.

E é um desafio que, como a crise social que emergiu nos últimos dias, irá consumi-lo e distraí-lo de suas prioridades a longo prazo. Entre elas, fortalecer as relações israelenses com o mundo árabe e colaborar com os Estados Unidos para combater a ameaça que vê no programa nuclear iraniano.

— Ele é o mágico que sempre tira o coelho da cartola — disse Anshel Pfeffer, um biógrafo do premier. — Agora está ficando cada vez mais difícil para ele encontrar coelhos.

Apesar de secular, Netanyahu há anos mantém uma aliança política frutífera com os partidos judeus ultraortodoxos. Mesmo descendente de europeus, o premier se apresenta faz tempos como um defensor dos judeus com origens no Oriente Médio.

Como mandatário, desenvolveu uma relação amigável com o presidente russo, Vladimir Putin, apesar de cultivar os fortes laços com Washington. Em casa, com frequência encabeçou coalizões de governo com partidos à sua direita e à sua esquerda — e sempre teve na manga a carta de usá-los um contra o outro.

Suas capacidades de triangulação o permitiram em 2020 chegar a acordos diplomáticos históricos com três nações árabes que há décadas vinculavam o estabelecimento de relações com os israelenses à criação de um Estado palestino. 

Netanyahu conseguiu os tratados não apenas sem ceder qualquer terra para os palestinos, mas caracterizando o primeiro deles, selado com os Emirados Árabes Unidos, como uma compensação por ter suspendido seu plano de anexar partes da Cisjordânia ocupada. Alguns analistas questionam se ele sequer tinha a intenção de implementar a mudança.

Suas aptidões que desafiam as probabilidades o levaram ao poder pela primeira vez em 1996, após reverter uma distância de 20 pontos nas pesquisas e derrotar Shimon Peres. O talento para se reerguer fez com que ficasse no governo de 2009 a 2021 e voltasse no ano passado, mesmo com o julgamento por corrupção.

Sem saída

Mas na segunda-feira havia a sensação de que, desta vez, Netanyahu não tinha uma saída de emergência rápida para a crise na qual ele mesmo imergiu seu governo e seu país. Ele comprou algum tempo, mas em um jogo de soma zero entre seus oponentes nas ruas e os aliados no poder, a prorrogação pode não durar muito tempo.

Se após o recesso de abril Netanyahu amenizar — ou cancelar — sua reforma judicial, ele arrisca uma ruptura possivelmente fatal com os partidos de extrema direita que lhe dão uma maioria no Parlamento. Se ele ceder às demandas dos aliados e prosseguir com o plano para enfraquecer a independência da Suprema Corte e os freios e contrapesos, ameaça aprofundar e prolongar uma crise social que causou greves em hospitais, aeroportos e escolas, além de catalisar mal-estar nas Forças Armadas.

— É um cenário que ele não tem como ganhar — disse Pfeffer.

Para muitos, Netanyahu já perdeu algo: sua reputação como alguém que prioriza a estabilidade e a segurança de Israel. Antes de voltar ao governo em dezembro, repetiu para aliados e jornalistas que seria uma figura estável, mesmo à frente da coalizão mais de extrema direita e conservadora religiosa que o país já viu.

— Eu terei minhas duas mãos firmes no volante — disse ele em dezembro durante uma entrevista à Rádio Pública Nacional.

Mas sua decisão no domingo de destituir o ministro da Defesa, Yoav Gallant, um dia após o correligionário alertar que as rupturas sociais causadas pela reforma judicial eram um risco para a segurança nacional, foram mal recebidas. Críticos entenderam a demissão como ações de um líder mais motivado por questões políticas do que de segurança.

E o caos de segunda-feira — manifestações, uma greve nacional, suspensão dos serviços de saúde, das aulas, de voos e até da coleta de lixo — pareceu tudo menos um sinal de estabilidade.

Mudança de opinião

Uma pesquisa divulgada na segunda pela emissora Kan indicava que muitos israelenses mudaram de opinião sobre seu primeiro-ministro. Pela primeira vez, mais israelenses disseram que preferiam ser comandados por Benny Gantz, parlamentar de oposição e ex-chefe das Forças Armadas, do que por Netanyahu.

Quase dois terços dos entrevistados eram contra a destituição de Gallant. Um número parecido endossava a interrupção imediata da reforma judicial.

Tudo isso, em parte, é consequência da decisão prévia tomada por Netanyahu de permanecer na política apesar de ser investigado, acusado e julgado por corrupção. A escolha causou uma fissura entre ele e aliados mais moderados, reduzindo o leque de possíveis parceiros de coalizão para os partidos de extrema direita e ultraconservadores.

No processo eleitoral do ano passado, Netanyahu formou um bloco com as legendas menores, de modo que ele mesmo — um político de direita — era a ponta mais ao centro do espectro da aliança. Isso fez com que ficasse em dívida com as prioridades dos parceiros, incluindo profundas mudanças judiciais, e sem possibilidade de triangular da mesma forma que fazia em coalizões prévias, com demandas contrastantes que o faziam parecer moderado.

Críticos dizem que o premier tem razões própria para querer minar o Judiciário: descarrilar seu próprio julgamento, algo que ele nega. Mas foram dois dos aliados de coalizão de Netanyahu, Yariv Levin e Simcha Rotchman, que conduziram os trâmites da reforma judicial nas últimas semanas, não o premier — principalmente após a Procuradoria-geral vetá-lo de intervir devido a potenciais conflitos de interesse.

Para além do Judiciário, os parceiros de coalizão de Netanyahu também prejudicam alguns dos objetivos de política externa que mais preocupam o premier. Itamar Ben-Gvir, o ministro de Segurança Nacional e expoente da extrema direita, irritou muçulmanos ao entrar no complexo da Mesquita de al-Aqsa, lugar sagrado em Jerusalém conhecido pelos judeus como Monte do Templo, cercado de seguranças.

Bezalel Smotrich, ministro das Finanças também de extrema direita, causou revolta ao dizer recentemente que os palestinos não existiam. Também defendeu que o Estado israelenses "apagasse" a cidade palestina de Huwara, no centro da onda de violência na ocupada Cisjordânia, que já deixa mais de 80 mortos neste ano.

Objetivos eclipsados

Ambos políticos minaram os objetivos de Netanyahu de estabelecer relações diplomáticas inéditas entre Israel e a Arábia Saudita e fortalecer os laços que ajudou a criar em 2020 com os Emirados Árabes Unidos. Também prejudicam os planos de encorajar Washington a ajudar Israel em sua cruzada contra a infraestrutura nuclear iraniana.

Netanyahu não foi convidado para visitar Abu Dhabi. Um representante do governo dos Emirados, contudo, viajou sem grande alarde até Israel para falar com o premier sobre, entre outros assuntos, as ações de Ben-Gvir, segundo um funcionário ocidental que foi brifado sobre o encontro, mas preferiu não se identificar.

Relações formais entre Israel e a Arábia Saudita permanecem distantes no horizonte. Os comentários de Smotrich geraram repúdio formal e condenação de Riad, que apenas dias antes anunciou a retomada das relações com o Irã, arquirrival de Tel Aviv.

O relacionamento entre Netanyahu e o governo Biden também estão fragilizadas, já que as preocupações americanas com a reforma judicial e as frustrações com Ben-Gvir e Smotrich, consomem a maior parte das relações bilaterais.

Em coalizões prévias, Netanyahu poderia ter relegado Ben-Gvir para cargos menos proeminentes. Agora, contudo, o premier depende do aliado ultraconservador para se manter à frente do governo. E, para manter-se no poder, disse a ele que consideraria criar uma guarda nacional sob o guarda-chuva de seu ministério.


Fonte: O GLOBO