Pouco visível nos bairros turísticos da capital, miséria chega a 75% dos lares no entorno de Buenos Aires, segundo o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina

Quando era Arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, desde março de 2013 Papa Francisco, visitava com frequência favelas da capital argentina, e tinha especial carinho pela 21-24, localizada no bairro de Barracas. 

Se tem algo que o Sumo Pontífice domina e sobre o que pode falar com pleno conhecimento é a pobreza em seu país. Talvez por isso, e porque a situação social dos cidadãos mais humildes é assunto sensível para qualquer governo peronista desde a década de 1940, recentes declarações do líder da Igreja Católica sobre os elevados índices de pobreza na Argentina caíram como um balde de água fria na Casa Rosada.

Em entrevista à Associated Press, Francisco pontuou que “no ano de 1955, quando terminei o Ensino Médio, a pobreza no país era de 5%. Hoje, está em 52%. O que aconteceu? Má administração, políticas ruins?”. E ainda classificou a taxa de inflação de quase 100% ao ano de “impressionante”.

Se para qualquer governo peronista as palavras de Francisco teriam causado profundo mal-estar, no de Alberto Fernández, que sonha em disputar a reeleição em outubro, foram um revés não só inesperado como difícil de digerir. 

O chefe de Estado argentino sempre exibiu sua proximidade com o Papa, o visitou várias vezes e o citou em diversos discursos. Hoje, não está claro para o governo argentino se Francisco falou sobre os alarmantes indicadores de pobreza com algum objetivo específico, ou se foi apenas um desabafo do argentino que sofre por seu país de origem.

Posteriores declarações de Fernández deterioraram ainda mais a imagem do chefe de Estado. Perguntado sobre a inflação, o presidente disse que “as queixas que ouço são pelas filas para ir comer fora, as pessoas esperam duras horas”. 

De fato, nos restaurantes de bairros mais ricos, como Palermo, Recoleta e Porto Madero, muitas vezes é preciso aguardar para entrar. Mas essa é a realidade, muito relacionada ao crescimento do turismo por conta da desvalorização do peso, de um percentual mínimo de argentinos.

Ajuda até para comer

Na favela 21-24, as palavras de Francisco foram recebidas como um sinal de que, mesmo a milhares de quilômetros de distância e do alto da cúpula da Igreja Católica, o Papa continua atento à situação social argentina. 

Em sua pequena sala da paróquia local, o padre Toto Vedia diz, em conversa com O GLOBO, que “o que Francisco afirmou nos representa, sentimos exatamente a mesma coisa. A pobreza só aumenta e as necessidade das pessoas mais humildes são cada vez maiores”.

— Hoje nos pedem ajuda para pagar o aluguel de um quartinho aqui na favela, para recarregar o botijão de gás, para comer — conta o padre, que conviveu com Bergoglio, que ia de ônibus até a favela, muito próxima do centro de Buenos Aires.

Turistas brasileiros costumam ficar surpresos ao não verem pobres nas ruas da capital argentina, como se observam no Rio e São Paulo. A pobreza argentina é menos visível, mas não menos dramática. Como explica Agustin Salvia, diretor do Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA), as maiores taxas de pobreza estão na Grande Buenos Aires.

De acordo com dados do observatório, uma das fontes mais confiáveis na Argentina para indicadores sociais, a pobreza na capital atinge 12,7%, bem abaixo dos 46,5% registrados em seu entorno. 

Em alguns distritos localizados a poucos quilômetros da capital, essenciais para se vencer uma eleição na Argentina, 74,9% dos moradores vivem abaixo da linha de pobreza. São os cidadãos mais marginalizados da sociedade, que dependem de programas de ajuda social.

— Nos bairros mais pobres da província de Buenos Aires a pobreza já chega a 50,1% — diz Salvia.

E o especialista acredita que o mais grave no atual cenário argentino é a pobreza ter se tornado crônica.

— Hoje há uma pobreza estrutural, apesar de a economia ter crescido 10% em anos como 2021. Isso se explica pela inflação e a crescente informalidade no mercado de trabalho — diz.

Salvia informa ainda que 37% dos assalariados argentinos e 68% dos não assalariados trabalham no mercado informal. Em média, 46% dos trabalhadores ocupados do país não têm carteira assinada.

— Isso faz com que a Argentina se pareça (hoje) muito mais com o Brasil e seus vizinhos latino-americanos — aponta, com a ressalva de que os serviços públicos no país “têm melhor qualidade”.

Em sua fala, o Papa Francisco lembrou de uma Argentina na qual nos bairros mais pobres era possível ver famílias progredindo socialmente graças ao trabalho. Paralelamente, o Estado tinha mais recursos para investir em saúde e educação, entre outros serviços públicos.

As pessoas “superavam a pobreza com trabalho”, e não dependiam de programas públicos de ajuda, que hoje sustentam 40% das famílias urbanas argentinas. Sem os subsídios estatais, os especialistas estimam que a taxa de pobreza nacional já estaria em 50% — para o observatório, ela está em 43%, acima dos 36% informados pelo governo e abaixo dos 52% citados pelo Papa.

Novos pobres

Existe, na avaliação de Salvia, outra diferença em relação ao Brasil: dos pouco mais de 40% de pobres argentinos, entre 10% e 15% são “novos pobres”, ou seja, despencaram da classe média nos últimos 20 anos. São pessoas que ganham muito mal, profundamente afetadas pela inflação ou desempregadas. Esse é o eleitorado mais frustrado, muitas vezes seduzido por opções populistas de direita.

Na favela 21-24 existem mais de 50 refeitórios populares. Na avenida principal da comunidade, diariamente há distribuição de comida. 

A Casa Rosada não gostou de ler declarações de Francisco sobre uma realidade que dói, mas ex-ministros do atual governo são vistos na chamada “Favela do Papa” fazendo doações de dinheiro. Um deles, com o qual O GLOBO se encontrou, contou, reservadamente, que “sempre que posso venho. Não é muito, mas tudo ajuda”.

Nas ruas da favela, moradores driblam dificuldades com ajuda do poder público, doações particulares e o trabalho social dos padres, que se formaram ao lado de Francisco.

— O Papa está coberto de razão, o principal problema da Argentina é a injustiça social — diz o padre Vedia.


Fonte: O GLOBO