Em comum, identificados por terem quebrado relógio histórico no Planalto, levado réplica de Constituição Federal do STF e até vestido toga de ministros têm rotina solitária

Porto Velho, RO -
Três rostos ficaram famosos entre a multidão que invadiu às sedes dos Três Poderes, em Brasília, durante os atos golpistas há exatamente um mês. 

Em comum, o mecânico Antônio Cláudio Alves Ferreira, de 30 anos; o designer Marcelo Fernandes Lima, de 50; e o funcionário de uma empresa de tempero Willian da Silva Lima, de 25, têm rotinas solitárias e destruíram peças históricas. Os três foram presos pela Polícia Federal após serem flagrados em vídeos de câmeras de segurança dos prédios públicos e em fotos compartilhadas nas redes sociais.

O primeiro a ser identificada foi Ferreira, que aparece nas imagens jogando no chão do Palácio do Planalto e estilhaçando o relógio de Dom João VI, uma das duas peças existentes do relojoeiro francês Balthazar Martinot. Desde março de 2021, após se separar da namorada, ele ocupava sozinho uma casa de 28 metros quadrados em uma rua de paralelepípedo no Loteamento Jardim Paraíso, em Catalão.

Sem amigos ou parentes próximos, em novembro ele passou a percorrer com seu Gol branco ano 1998 os mais de 300 quilômetros que separam a cidade goiana de 113 mil habitantes da Praça dos Três Poderes. 

Desde então, fincou uma bandeira do Brasil na fachada do imóvel, participou do acampamento localizado em frente ao Quartel-General do Exército e ainda colocou em seu perfil de WhatsApp uma foto de um boneco extraterrestre verde segurando uma faixa com uma mensagem inconstitucional: "Intervenção militar com Bolsonaro no poder".

Foi também no fim do ano que Ferreira deixou de pagar os R$ 450 do aluguel, que, dizendo não ter conta em banco, entregava nas mãos da proprietária até o dia 5 de cada mês. Ao assinar o contrato como inquilino, havia contado fazer bicos como pintor de carros em duas oficinas da região. 

Natural de Caldas Novas, município vizinho, ele não trabalhava com carteira assinada desde março de 2020, quando recebeu R$ 3.579,01 de salário.

2 de 4 Homem que quebrou relógio que Dom João VI trouxe para o Brasil em 1808 foi identificado como Antônio Cláudio Alves Ferreira, de 30 anos — Foto: Reprodução de TV

Homem que quebrou relógio que Dom João VI trouxe para o Brasil em 1808 foi identificado como Antônio Cláudio Alves Ferreira, de 30 anos — Foto: Reprodução de TV

Para o psiquiatra Raphael Boechat, professor da Universidade de Brasília (UNB), ainda que sem entrevistá-lo, a partir de características comportamentais do mecânico, é possível traçar um perfil típico dele e dos demais golpistas envolvidos nesse tipo de vandalismo ocorrido no Distrito Federal:

— Geralmente são pessoas que envolvem grande energia e tempo no tema, neste caso bolsonarismo, talvez justamente por não terem outros vínculos sociais, afetivos e familiares. Eles agem com muito vigor e isso passa a fazer parte importante de sua vida, os fazendo despender uma emoção maior. 

É importante também destacar a atuação em bando observada nesse episódio. Componente clássico em adolescentes, eles vestem o mesmo estilo, falam a mesma frase, compartilham da mesma ideologia e esse feito passa a fazê-los agir da mesma forma e sem pensar.

Constituição como 'troféu'

Também flagrado em cenas que viralizaram na internet, Fernandes aparece enrolado a uma bandeira do Brasil segurando como, se fosse um troféu, uma réplica da Constituição Federal de 1988 retirada da sede do Supremo Tribunal Federal. Na última quarta-feira, ele deixou sua cidade-natal, São Lourenço, localizada na Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais, para se entregar à polícia.

Ao GLOBO, amigos do designer o descreveram como um homem tranquilo, solitário e, mais recentemente, um “bolsonarista fanático”. Ele atendia à distância clientes de Campinas, onde morou e abriu uma empresa, e contou à PF ter saído do QG, “com a intenção de fazer um ‘abraço humano’ ao redor dos prédios da Praça, juntamente com a grande maioria das pessoas que ali estavam no acampamento”.

Em depoimento, o homem negou ter havido “qualquer organização ou incitação específica para que ocorresse a invasão de qualquer prédio público” e contou ter tomado o livro histórico da mão de outras pessoas para que ele não fosse destruído.

— Ele não tem capacidade de matar uma mosca. Um coração de todo tamanho. Isso que ele fez é inexplicável — disse uma parente do preso, que pediu para não ter o nome divulgado.

— Nessa história, sinto por ele e por sua mãef, apesar de saber do erro terrível que foi cometido. Ele sempre me tratou com muito carinho, me chamando de tia Chris, e é amado por muitos. Sempre foi fora da casinha, mas nunca fez mal a ninguém, exceto a ele mesmo. 

Apesar de repudiar todo e qualquer ato de vandalismo e violência e achar que ele merece a punição, não vou negar o carinho que tenho desde que era um menino — afirmou Isabel Cristina, amiga de Lima.

Professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernando Luz Brancoli tem se debruçado em pesquisar semelhanças de contextos entre os atos da capital federal e episódios de extremismo violento no Oriente Médio e na Europa, como os processos de radicalização dos indivíduos envolvidos:

— O primeiro caminho a entender esse tipo de prática tem a ver com a sociabilidade. Eles não são impelidos a participar a cometer os atos do zero, mas são antes inseridos em uma comunidade, seja online ou física, como aconteceu nos acampamentos. 

Nesses locais, encontram novos sentidos de vida, fazem novos amigos, e a violência em si figura como a ponta do iceberg dessa teia de relações e de conexões importantes. A partir daí, imbuídos da premissa de andarem nesses grupos, incorrem nessas ações, porque elas passam a ser ali compreendidas e incentivadas.

Preso em flagrante na tarde de 8 de janeiro, Lima também foi um personagem que ganhou notoriedade após ser visto desfilando pelo “tapete vermelho” do STF com uma toga, vestimenta que simboliza a autoridade dos ministros da Corte. 

Aos investigadores, contou ter entrado “por curiosidade” no prédio e ficado no local “por dez minutos”. Como havia muita fumaça no térreo, disse ter tentado sair por uma rota alternativa, quando foi detido.

No relato, Lima afirmou ter viajado a Brasília em um ônibus fretado por terceiros, aos quais negou conhecer. No depoimento, também garantiu não ter recebido pagamento para participar das manifestações golpistas. Ele teve o celular apreendido e forneceu a senha do aparelho para que mensagens possam ser rastreadas e os financiadores da viagem, identificados.


Fonte: O GLOBO