Outras missões que novo chanceler terá incluem a crise venezuelana, as tensões sino-americanas e a reconstrução de laços na América Latina

Porto Velho, RO
- O experiente embaixador Mauro Vieira, que voltará para o comando do Ministério de Relações Exteriores a partir de 1º de janeiro, terá como desafio imediato a recuperação de um Itamaraty que perdeu espaço e protagonismo global durante os quatro anos em que o presidente Jair Bolsonaro esteve no Palácio do Planalto. Para analistas ouvidos pelo GLOBO, outros pontos-chave incluirão uma saída negociada para a crise venezuelana, navegar pelas tensões sino-americanas e a reconstrução de laços na América Latina.

A nomeação de Vieira, que já havia ocupado a pasta durante o segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, foi confirmada pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva nesta sexta-feira. Para o embaixador aposentado Roberto Abdenur, que chefiou a embaixada em Washington durante a primeira passagem de Lula no Planalto, a principal missão do novo chanceler é "reconstruir a política externa demolida no governo Bolsonaro, particularmente durante a passagem de Ernesto Araújo no Itamaraty".

Abdenur considera que o Brasil "perdeu completamente a respeitabilidade e a confiança" durante o atual governo e viveu o maior isolamento internacional de sua História. Ainda assim, ele diz que considera-se otimista em relação às possibilidades do próximo governo:

— Integro um grupo de embaixadores que se reúne para pensar nos rumos da política externa brasileira. Ele se divide em dois grupos. Alguns acreditam que o Brasil só poderá se recuperar muito em longo prazo. Outros, me incluindo, entendem que o país pode dar a volta por cima muito rapidamente.

A professora de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), Monica Herz, disse crer que a escolha de Lula sinaliza “o interesse de fazer da política externa um elemento central do governo”, chamando atenção para a experiência do sucessor de Carlos França. Atualmente embaixador do Brasil na Croácia, Vieira já ocupou alguns dos principais postos no exterior, como a embaixada na Argentina, em Washington e a representação do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York.

O vasto currículo do diplomata, afirmou ela, faz com que esteja à altura da missão que tem pela frente. A seu ver, uma tarefa fundamental será “reativar a energia criativa dentro do Itamaraty” após “quatro anos de adormecimento”. A seu ver, outros pontos importantes são:

— Uma reinserção do Brasil no sistema multilateral e na América Latina, uma recolocação do Brasil no debate sobre a disputa sistêmica entre a China e os Estados Unidos. O país esteve completamente marginalizado nesses processos de negociação, discussão, construção de normas, nestes últimos quatro anos.

A questão climática também volta a ser prioritária para a política externa brasileira a partir do ano que vem, após quatro desastrosos anos para a política ambiental brasileira durante o governo de Jair Bolsonaro. Os primeiros indícios vieram com a ida do presidente eleito à COP27, a conferência ambiental da ONU que aconteceu em novembro na cidade egípcia de Sharm el-Sheikh, e com o pronunciamento que o presidente fez por lá.

Em sua fala, Lula prometeu deixar a “devastação no passado”, ajudar a criar uma “nova ordem mundial pacífica” e recuperar o protagonismo internacional brasileiro. O tema deve ser um carro-chefe da política externa brasileira, crê Abdenur, afirmando que a fala do presidente eleito foi “muito positiva” e sua recepção, uma “prova de que a reconstrução é possível".

Herz crê que o papel de Vieira na abordagem transversal que o governo eleito promete para o clima também será importante, dada a relevância do tema para o futuro da Humanidade e da importância de negociações diplomáticas para soluções de nível global. O futuro chanceler, inclusive, ocupava a pasta no marco do emblemático e vinculante Acordo de Paris, em 2015.

— Há também a expectativa internacional, acirrada pela presença do Lula na COP27, com o trabalho do Brasil nesta agenda ambiental — disse Herz. — Uma coisa transborda para a outra. Isso permite também ao país se pôr com um status relevante com uma série de outras temáticas.

A professora também chama atenção para os desafios na esfera regional, também escanteada durante os quatro anos de Bolsonaro. A seu ver, “é muito difícil avançar mecanismos de cooperação na região sem a presença brasileira fazendo coordenação”:

— O importante é que temos um conjunto de países dispostos a enfrentar problemas graves, como a situação política e econômica da Venezuela, a inserção cubana na região, enfrentar o autoritarismo que se desenvolve em países como a Nicarágua — afirmou ela.

Com relação à situação venezuelana, a especialista disse já ver sinais de mudança com o alívio das sanções americanas ao petróleo venezuelano, aproximação que aumentou após a guerra na Ucrânia. Com o aumento do preço do combustível, o produto da Venezuela, dona da maior reserva de petróleo do mundo, tornou-se atraente para Washington.

— Precisamos negociar a participação da Venezuela para uma participação nos fóruns multilaterais e um regime mais democrático — disse ela. — É uma via de duas direções: por um lado, podemos contribuir para a redemocratização venezuelana e sua reinserção regional e, se isso acontece, fortalecemos os projetos regionais. Precisamos lembrar que a decadência da Unasul e dos projetos regionais estão claramente associados à impossibilidade dos países acordarem sobre a Venezuela.


Fonte: O GLOBO