A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e o titular dos Direitos Humanos, Silvio Almeida — Foto: Fotos de Lucas Tavares/O Globo e Brenno Carvalho/O Globo

Porto Velho, Rondônia - As denúncias contra Silvio Almeida provocaram uma espécie de bug em setores da esquerda, do movimento negro e do governo. Compreensível. Se fosse ficção, o enredo seria tido como mirabolante. Um ministro dos Direitos Humanos, símbolo da luta antirracista, é acusado de assediar moralmente seus funcionários e sexualmente diversas mulheres, entre as quais a colega da Igualdade Racial, também negra e tão politicamente simbólica quanto ele.

Como se não bastasse, figuras poderosas do governo, incluindo a primeira-dama e feminista Janja, sabiam da situação e passaram meses fingindo que não havia nada acontecendo. Só quando os relatos vieram à tona é que Janja correu a apoiar a ministra assediada, e Lula demitiu Almeida.

Infelizmente, o caso nada tem de invencionice. Anielle Franco confirmou a história ao próprio Lula na presença de outras ministras, e mais relatos já surgiram. Um deles, de uma professora de Santo André que postou um vídeo dizendo que Almeida apalpou suas partes íntimas durante um almoço em 2019.

Outro caso foi exposto por uma ex-aluna da Universidade São Judas Tadeu, que relatou ao Intercept a insistência do então professor por um encontro, em troca de uma boa avaliação para sua monografia em 2009. Várias ex-estudantes relataram sob anonimato à Veja terem sido assediadas sexualmente em troca de melhores notas entre 2007 e 2012.

Casos de assédio moral foram descritos por servidores ao UOL e ao Metrópoles. A ONG Me Too confirmou ter atendido mulheres que se disseram vítimas de Almeida. Só na última semana, a Controladoria-Geral da União registrou cinco novas denúncias ligadas a seu ministério. A Polícia Federal, que acaba de iniciar a apuração, já ouviu um depoimento com teor semelhante.

Almeida nega peremptoriamente as acusações. Segundo ele, há uma campanha para afetar sua imagem “enquanto homem negro em posição de destaque no poder público”, uma conspiração movida por grupos que queriam derrubá-lo (ele não diz quais) ou por interesses econômicos da ONG Me Too, que sugere ter tentado intervir na licitação para a contratação do serviço de disque-denúncia (a ONG não disputa e não faz contratos com o setor público).

O ex-ministro e muitos de seus defensores empunharam ainda o argumento clássico em casos de assédio, questionando por que Anielle e as outras vítimas não se manifestaram antes — ignorando quanto pode ser difícil expor abusos cometidos por homens em posição de poder. Para outra ala, Almeida foi vítima de um “tribunal de exceção”. Também não faltou quem apontasse um “linchamento identitário”, espécie de autofagia entre os movimentos pró-minorias.

Desnecessário dizer que Silvio Almeida tem todo o direito de se defender e que as investigações precisam avançar de forma equilibrada. Mas é preciso colocar a bola no chão e tomar distância antes de colar na história o selo de guerra identitária.

Não se ouviu, até agora, ninguém associar o eventual assédio ao fato de o ministro ser negro. Até porque Anielle também é negra, assim como pelo menos uma das outras vítimas, que ainda reluta em falar abertamente.

O único a relacionar o caso à cor da pele foi o próprio Almeida, em sua defesa. Entre as lideranças e ativistas do movimento negro, a postura mais comum foi pedir cautela nas apurações e expressar uma justificada preocupação de que o episódio prejudique a luta antirracista — uma das razões apontadas nos bastidores pela própria Anielle para se manter em silêncio durante tanto tempo.

Em artigo publicado na revista Elle, a ativista antirracista, pesquisadora e escritora Winnie Bueno definiu o dilema de Anielle e outras mulheres negras que passam por situações parecidas como “um limiar muito complexo, uma encruzilhada perversa onde temos que decidir a quem somos leais. Quase sempre decidimos desistir de ser leais a nós mesmas em favor da lealdade à coletividade. Mas quanto nos custa essa lealdade? Quanto ela está sendo benéfica à comunidade negra de conjunto?”.

Winnie está certa. Não haverá igualdade plena enquanto a busca por equidade de gênero for subordinada a qualquer outra causa. Ao longo da História, abusos cometidos contra mulheres sempre foram repelidos por escudos retóricos e políticos convenientes. Encarar o fato de que seres humanos cometem erros independentemente da cor da pele é desafiador, ainda mais num governo que transformou o combate à discriminação em bandeira.

Tal desconforto pode até explicar a demora para tratar os relatos com a diligência e celeridade que mereciam. Mas não pode servir de desculpa para continuar empurrando com a barriga um trabalho urgente para mulheres de todas as raças.


Fonte: O GLOBO