Natural de Uruguaiana (RS), Mickey Barreto se baseou em antiga lei americana para ficar por cinco anos em quarto de estabelecimento, mas acabou indiciado pro fraude

"Pareço louco que está inventando história, mas não sou louco de maneira nenhuma": é assim que Mickey Barreto, o brasileiro que morou de graça por cinco anos em um hotel de Manhattan, começa a sua entrevista por telefone ao GLOBO. Muitas das narrativas do brasileiro natural de Uruguaiana (RS) se assemelham a teorias da conspiração ou a fantasias mirabolantes, o que vem dividindo opiniões na internet. Enquanto uns o chamam de "gênio", outros o consideram "maluco" ou "picareta" em comentários no X e no Instagram.

Mickey, que originalmente se chama Marco Aurélio Canuto Muniz Barreto, conta que chegou aos EUA em 1997, para estudar artes, e depois administração, na Brigham Young University de Idaho, universidade da Igreja Mórmon, religião da qual ele já fazia parte no Brasil. Em seguida, diz ter se casado com uma americana, também mórmon, com quem teve dois filhos e assim se estabeleceu no país. Juntos, teriam enriquecido por meio de um site de revenda de roupas, mas faliram em 2008, em decorrência da crise econômica que assolou os EUA.

Mas foi em Nova York que Barreto virou notícia. Ele afirma que chegou à cidade em 2018, após o casamento ter acabado por causa de uma traição cometida por ele. Foi morar, então, com Matthew Hannan, justamente o homem com quem ele traiu a esposa. Hannan que lhe contou pela primeira vez sobre a lei de 1969 de Nova York que trata de regulamentação de aluguéis na cidade.

Com base na legislação, em vigor até hoje, Barreto conseguiu morar no hotel New Yorker pagando apenas a diária da primeira noite. Mas seu "conto de fadas" virou pesadelo após cinco anos e, em fevereiro, ele foi iniciado por diversos crimes, inclusive fraude imobiliária. Agora, aguarda o julgamento em liberdade. Segundo o brasileiro, ele jamais teve o plano de se "apropriar" do apartamento no hotel quando chegou ao local para uma estadia, em 2018.

Naquele período, diz, ele e seu companheiro Matthew estavam sem dinheiro e sem casa para morar. Por isso, pulavam de hotel em hotel na cidade, em busca de preços baratos — o que era o caso do New Yorker que, apesar de ser um edifício icônico, se transformou em um estabelecimento decadente.

— Quando chegamos no New Yorker, nos ofereceram uma suíte muito melhor, com varanda, por 50 dólares a mais. Mas recusamos, porque queríamos o quarto mais barato. Se eu tivesse plano de ficar cinco anos, teria pegado a suíte melhor, mas não tinha plano nenhum — diz Barreto.

Mickey Barreto em frente ao New Yorker — Foto: Reprodução

Peregrinação mórmon e formação em administração

Natural de Uruguaiana (RS), Barreto diz que estudou administração por seis meses na PUC/RS , em 1992, até que trancou a matrícula porque sua mãe foi diagnosticada com câncer. Ela não resistiu e morreu, mas Barreto não retornou para a universidade. Nesse período, conta que se aproximou de amigos da Igreja Mórmon e se batizou na religião. Dos 19 aos 21 anos, cumpriu missões religiosas no norte do Rio Grande do Sul e aprendeu inglês. Após sugestão dos amigos, buscou uma vaga na BYU Idaho e foi aceito em 1997. Conta que estudou primeiro artes e depois administração.

— Assim começou minha vida nos EUA, mas depois de formado não sabia o que ia fazer. Meu visto de estudante ia acabar, teria que sair do país ou mudar de faculdade. Pensei então em fazer direito — narra Barreto.

Em 2002, ele diz que começou a trabalhar como voluntário no Consulado da Itália, em Salt Lake City, cidade onde a comunidade mórmon é muito forte. Sua intenção era aprender italiano e pedir a cidadania italiana. Segundo ele, seu bisavô era italiano. Nesse momento da entrevista, Barreto conta a primeira história difícil de ser checada: o cônsul italiano teria ido até Turim pedir para que ele fosse empregado no exército italiano.

— Mas fiquei louco de medo, porque tinha italiano indo para a Guerra do Iraque e morrendo. Eu recusei o convite, o cônsul ficou triste comigo, mas fui para Los Angeles morar com um amigo — afirma Barreto.

Na nova cidade, Barreto pensou em estudar direito, mas depois desistiu por não ter gostado da universidade. Em 2003, conheceu Yvette Nicole Barreto, também mórmon, com quem se casou e teve dois filhos: Paul e Jason. Os dois são casados no papel até hoje, diz o brasileiro, mas já estão separados desde 2018

Prosperidade e falência

Segundo Barreto, o início do casamento foi de prosperidade econômica. O casal teria aberto uma empresa de revenda de roupas e acessórios e com isso ganharam "muito dinheiro bem rápido", conta. Perguntado sobre o nome da empresa, ele diz que não poderia mencionar por causa do acordo da venda da empresa, uma consequência indesejada durante a crise econômica de 2008.

— Estávamos devendo fornecedores e com dívidas de royalties. Foi um processo avassalador. Morávamos em uma casona em Beverly Hills, mas precisamos nos mudar para um apartamento de dois quartos. Meu filho, com três anos, começou a chorar na loja quando descobriu que precisaria trocar seus sapatos da Louis Vuitton por calçados normais — afirma Barreto, que diz que então começaram a trabalhar com bicos.

No meio do momento financeiro difícil, os dois filhos viraram atores mirins, diz Barreto. Eles teriam feito sucesso em comerciais de televisão, o que garantiu dinheiro à família. Segundo o brasileiro, Paul teve um pequeno papel no filme Jobs, sobre o fundador da Apple. A participação do filho seria maior, mas ele "abriu a boca" e se indispôs com os produtores do filme, alega. No site IMDB, o nome de Paul Barreto realmente consta nos créditos do filme, como ator do personagem Reed Jobs, filho de Steve Jobs.

Mudança de nome

Sobre a mudança de nome de Marcos para Mickey, ele conta que aconteceu quando se naturalizou americano. Segundo ele, o departamento de segurança dos EUA não aceitou seu nome original. Segundo ele, sem razão aparente.

— É um mistério, não me contaram o motivo. Eles são muito carrascos, qualquer coisinha que você pergunta, eles podem te mandar embora. Não tem condição de perguntar muito. Falei então para colocar Mickey — explica.

Outra questão que o brasileiro diz não saber as respostas é sobre a dificuldade que passou a ter para comprar um carro. Segundo ele, seu nome está "sujo" devido a fraudes cometidas por outras pessoas. E essas pessoas teriam ligações com a máfia coreana, que lhe perseguiria.

— Não consigo provar que eu sou eu. Quando tentei comprar carro, me citaram várias fraudes no meu nome. Meus adversários aqui são gente muito perigosa.

As histórias mirabolantes não se restringem à máfia coreana. Barreto também alega ser descendente de Cristóvão Colombo e diz que seria chefe de uma aldeia indígena brasileira. Quando foi detido pela polícia, devido ao imbróglio no New Yorker, ele diz que tentou ligar para o presidente dos EUA, Joe Biden.

Mas o brasileiro diz que nunca teve problema com a polícia até então. Semana passada, a Folha de São Paulo revelou a existência de um registro criminal de 2008, na Califórnia, onde ele morava, relativo a um Marcos Barreto com a mesma data de nascimento. Haveria ainda outras infrações de trânsito em seu nome, como dirigir embriagado.

-- Lembro que teve um carro que vendi numa concessionária e lembro que alguém ainda usava meu carro antigo e levava multas em meu nome. Não sei se tem algo a ver — defende Barreto.

Fim do casamento e a moradia no New Yorker

Barreto não se exime de culpa pelo fim do seu casamento. Ele diz que em outubro de 2017 foi visitar um então amigo que conhecia de Los Angeles — hoje seu companheiro Matthew Hannan — em Nova York, e os dois tiveram relações sexuais. Voltando para casa, uma "sex tape" deu início a uma briga que culminou no fim do matrimônio.

— Ele fez um vídeo (do sexo) e me mandou, aí minha mulher viu — conta o brasileiro, que diz ter lutado pelo casamento nos meses seguintes. — Levei ela para Paris para fazer ela esquecer, mas voltamos para Los Angeles ainda brigando. Quase fui preso na Itália por causa dessas brigas, porque ela achou que eu estava com um cara em Nápoles. Como não ia dar certo com ela, vim para Nova York para ficar com o Mathew.

Em Nova York, o novo casal estava sem dinheiro e sem casa, pois Hannan fora despejado semanas antes. Foi então que o americano lhe contou da lei americana de 1969. Ainda em vigor, a legislação diz que hotéis de Nova Yorker em funcionamento antes de 1969 e que cobrassem menos de US$ 88 por semana na época estavam habilitados a assinar contratos de aluguel por seis meses ou mais. A decisão cabe ao próprio hóspede, que tem o direito de se tornar residente permanente se assim solicitar.

— Matthew que me falou da lei, mas eu pensei "isso nunca vai acontecer". Eu sempre vivi sem problemas nos EUA, mas Nova York é muito difícil, muito competitiva — afirma Barreto.

Foi durante a noite de estadia no New Yorker, conta o brasileiro, que ele lembrou da lei e pensou em pesquisar se ele se encaixaria nas exigências listadas. Segundo Barreto, na manhã seguinte ele ligou para a prefeitura a fim de esclarecer suas dúvidas e recebeu a resposta positiva de que aquele hotel se encaixaria no perfil.

Erguido nos anos 30, o New Yorker foi, por décadas, um dos principais hotéis de Nova York. Até hoje há referências a antigos hóspedes famosos nos seus corredores, como o lutador Muhammad Ali. Mas entrou em decadência nos anos 70 e, em 1976, foi adquirido pelo coreano Sun Myung Moon, mais conhecido como Reverendo Moon, que transformou o hotel na sede de sua igreja, a Igreja da Unificação, uma das instituições que Barreto diz travar uma luta contra. Até hoje, a maioria dos hóspedes do New Yorker são seguidores da antiga seita coreana, que pregava ideias conservadoras e anticomunistas.

Depois que se hospedou em um quarto do hotel, em 18 de junho de 2018, Barreto comunicou ao gerente que queria alugar permanentemente o quarto. Ao ser informado da indisponibilidade dessa opção, ele procurou os tribunais, e saiu vitorioso. Não só ganhou o direito ao aluguel — nunca reconhecido pelo hotel, que se recusou a assinar um contrato com ele — como conseguiu registrar a escritura do prédio em seu nome. Com isso, passou a morar no local de graça.

Segundo Barreto, ele precisou apelar à Suprema Corte após ter tido uma primeira decisão judicial desfavorável. Em audiência no dia 10 de julho, o hotel não enviou representantes. Assim, o juiz Jack Stoller decidiu a favor de Barreto, com base na jurisprudência aventada pelo brasileiro, e ordenou que o hotel “devolvesse imediatamente ao peticionário a posse das instalações em questão, fornecendo-lhe uma chave”.

Com a ordem do juiz em mãos, Barreto e Hannan foram a um cartório de Manhattan para registrar o quarto 2565 em seu nome. Mas, ao contrário de apartamentos em um prédio residencial, o hotel não estava dividido nos registros da cidade por quartos. A propriedade tinha uma entidade cadastrada, o próprio hotel, identificado nos registros municipais como Bloco 758, lote 37. Assim, citando a ordem do juiz, Barreto preencheu a papelada declarando ser proprietário de todo o prédio, e o registro foi aceito.

Nos anos seguintes, a direção do hotel entrou em batalha judicial com Barreto, que, por outro lado, exige receber o pagamento de lucros do estabelecimento. Em novembro de 2023, o New Yorker conseguiu uma decisão que lhe dava o direito de despejar o brasileiro e seu companheiro do quarto. Naquele dia, ele chegou a ficar preso — por duas horas, segundo ele — e, em fevereiro passado, foi indiciado por uma série de crimes, incluindo fraude imobiliária.

Mas o brasileiro se defende e nega qualquer intenção criminosa no dia que se hospedou no icônico prédio de Manhattan

— Eu não errei, eu não abusei. Eu segui as leis.


Fonte: O GLOBO