Francês Gabriel Zucman quer tributar em 2% riqueza acima de US$ 1 bilhão. Ideia foi levada ao G20 e mira 3 mil pessoas no mundo, com potencial de arrecadação de US$ 250 bilhões por ano

Tributar bilionários e grandes multinacionais é tarefa moral, econômica e política, na avaliação do diretor do Observatório Fiscal Europeu, Gabriel Zucman. Apontado como “guru tributário" do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o economista francês de 37 anos se desvencilha da alcunha por considerar-se jovem demais.

Em entrevista ao GLOBO, ele defende não apenas a criação de um imposto mínimo de 2% sobre a fortuna de pessoas com patrimônio superior a US$ 1 bilhão, mas também o aumento da alíquota aplicada às multinacionais, de 15% para 20%. Juntas, segundo ele, as duas medidas arrecadariam pelo menos US$ 500 bilhões ao ano. Suas propostas foram apresentadas aos pares de Haddad no G20.

Em fevereiro, a convite do Ministério da Fazenda, você apresentou aos G20 a proposta de tributar as grandes riquezas. Quem são elas?

O ponto de partida são os super-ricos, pessoas que têm US$ 1 bilhão, sobre as quais incidem alíquotas de impostos significativamente mais baixas do que as que pagam outras categorias sociais. Uma série de estudos confirma este fato em vários países.

Por que isso ocorre?

Os ultrarricos têm tudo planejado. Quando você é extremamente rico, é muito fácil estruturar seu patrimônio de forma que gere pouco ou até nenhum lucro tributável. A noção de rendimento não está muito bem definida em se tratando dos muito ricos. É precisamente assim que conseguem evitar o imposto sobre o rendimento.

Em 2021, a mídia americana revelou que, por vários anos, bilionários como Jeff Bezos (dono da Amazon) e Elon Musk (dono de Tesla e X) pagaram zero ou quase zero de Imposto de Renda. Pesquisas acadêmicas mostram que isso vai muito além de casos isolados. É uma realidade global.

Como é sua proposta?

Consiste em criar um imposto mínimo sobre os ultrarricos igual a 2% de sua fortuna por ano. Se um bilionário paga hoje muito Imposto de Renda, e isso existe, não teria de pagar nada mais. Mas, se alguém como Bezos e Musk paga zero, teria de pagar um tributo igual a 2% de sua fortuna. Se seu patrimônio for de US$ 100 bilhões, recolheria US$ 2 bilhões em imposto.

O contribuinte poderia escolher entre renda e patrimônio?

Não há escolha. Há um percentual mínimo. As classes média e média alta pagam Imposto de Renda, até as classes trabalhadoras pagam contribuições para a seguridade. Todos pagam muitos impostos todos os anos. É totalmente absurdo que as grandes fortunas possam escapar desses tributos.

Como se calcula esse patrimônio?

São todos os ativos que você possui pelo valor de mercado, já descontadas as dívidas.

Como ter acesso a esses dados?

Minha proposta, tal como formulei, é um imposto sobre quem tem US$ 1 bilhão, o que é o caso de mais ou menos três mil pessoas em nível mundial. Eles são muito poucos, mas têm US$ 12 trilhões, US$ 13 trilhões de patrimônio. A maior parte da fortuna deles, cerca de 60%, está em ações de empresas listadas em Bolsa. Isso é muito simples de avaliar, porque existe um preço de mercado. A cada segundo podemos mensurar o valor das ações da Amazon detidas por Bezos, por exemplo.

A alíquota de 2% é suficiente?

É claro que podemos debater o nível justo de progressividade fiscal. Esta é uma questão complexa. Mas imagino que todos, ou quase todos, concordam que essa situação em que os contribuintes com maior capacidade contributiva pagam menos que o resto da população é insustentável e injustificável.

Aprovar esse tributo é factível?

Pesquisas de opinião mostram que há uma grande maioria dos eleitores, no Brasil, na França, nos EUA, que quer uma tributação maior sobre os muito ricos. Ao mesmo tempo, muitas pessoas pensam, no fim das contas, que somos impotentes, porque, se tentarmos tributá-los, eles podem ir para um paraíso fiscal.

Durante muito tempo foi assim. O que mudou, fundamentalmente, foi que, em 2021, 140 países assinaram um acordo internacional para uma tributação mínima de 15% sobre as multinacionais. Isso mostra que a concorrência tributária não é uma lei da natureza, não é uma fatalidade. Dado o problema e a solução já encontrada para as multinacionais, o mais lógico seria dizer: “agora vamos criar um imposto mínimo para os ultrarricos, um imposto mínimo comum.”

Para tributar os bilionários deve haver acordo semelhante?

É melhor ter um acordo internacional, onde o maior número possível de países se comprometa a aplicar o tributo. Mas não é indispensável. Tomemos a tributação mínima das multinacionais em 15%. Este acordo não foi ratificado por todos os países. EUA e China não o ratificaram. No entanto, o acordo existe e vai funcionar assim mesmo.

Por quê?

Há cláusulas que autorizam os países que fazem parte do acordo a sobretaxar as multinacionais de nações que não o aplicam, de modo que essas elas fiquem a uma taxa efetiva de imposto de pelo menos 15%. Assim como isso já existe para multinacionais, poderíamos aplicar a mesma lógica à tributação dos bilionários. Ou seja, se há países que optam por não tributar seus bilionários, isso é um direito deles. Mas outros países, pode ser o Brasil, a França, poderiam sobretaxar estes bilionários para que o tributo que incide sobre eles se aproxime deste padrão fiscal mínimo de 2%.

Por exemplo, se alguém se muda do Brasil para os Emirados Árabes, poderia ser taxado no Brasil se o tributo não chegar aos 2%?

Exato. A pessoa ou as empresas que ela tiver no Brasil seriam taxadas para compensar a menor tributação de que se beneficiaria nos Emirados ou num paraíso fiscal.

Isso não criaria espaço para protecionismo?

Sou um grande defensor da cooperação internacional. Mas para que ela funcione, é preciso haver mecanismos para incentivar a adesão aos acordos internacionais, e o mais poderoso é dizer: “Olhem, se não aderirem a este acordo, vamos cobrar os impostos que vocês decidirem não cobrar.” Isso pode forçá-los a aderir. Não o fazer equivale a colocar dinheiro na mesa para que outros países se apoderem dele.

Qual o potencial de arrecadação do imposto mínimo para bilionários?

US$ 250 bilhões por ano. Esta é estimativa a que chegamos, detalhada no relatório global sobre a evasão fiscal 2024 do Observatório Fiscal que dirijo.

Estamos falando de uma receita tributária bastante substancial. Para colocar este número em perspectiva, segundo os melhores estudos disponíveis, os países em desenvolvimento precisam de US$ 500 bilhões em receita fiscal adicional para enfrentar os desafios das mudanças climáticas.

O ministro Haddad é grande entusiasta da sua proposta. Ela pode avançar no G20?

Há uma janela de oportunidade para se levar a ideia adiante. Existe uma exigência popular, muito forte, de medidas dessa natureza. Pesquisas mostram que, em todos os países, a grande maioria da população, 60%, 70%, é a favor deste tipo de medida fiscal dirigida aos ultrarricos. Entre eleitores de todos os partidos políticos. Existe a demanda e o precedente da tributação das multinacionais. Isso nos permite entender que é possível. Tem a vontade do Brasil. O assunto foi colocado na agenda do G20 pela primeira vez em fevereiro deste ano. Fiquei impressionado com a resposta de diferentes ministros, a maioria saudava a iniciativa brasileira.

Do ponto de vista moral, talvez não possam recusar-se a discutir o tema...

É uma discussão moral, econômica e política. E central para o futuro da globalização. Se a globalização for acompanhada por um sistema fiscal cada vez mais injusto, onde as maiores fortunas pagam cada vez menos, quando o resto da população deve pagar mais, todo mundo sabe que isso não é sustentável.

Você defende elevar o tributo sobre as múltis. É possível?

Não só podemos, como temos de fazê-lo, porque 15% continuam a ser demasiado baixos. Não há razão para as multinacionais pagarem menos do que as empresas nacionais, as pequenas empresas. Podemos, numa segunda fase, aumentar a alíquota para 20% ou 25%. No relatório global sobre evasão fiscal, estima-se que, se a alíquota fosse para 20%, arrecadaríamos mais US$ 250 bilhões. Ou seja, com essas duas medidas, chegaríamos aos US$ 500 bilhões necessários para o clima.

Você voltará ao Brasil? Dizem que você é o guru de Haddad...

Eu não diria isso. Sou jovem (risos). Mas voltarei ao Brasil, sim. Não sei quando, mas vou.

(*Especial para O GLOBO)


Fonte: O GLOBO