Companhias argumentam que regulamentação não considera critérios como tempo de função e temem exposição de dados pessoais. Relatório mostra que menos da metade oferecem creche

A regulamentação da lei que prevê igualdade salarial entre homens e mulheres nos mesmos cargos e funções, aprovada no Congresso em julho do ano passado, virou uma batalha judicial. A iniciativa do governo brasileiro, que repete ação já tomada em 35 países, é questionada na Justiça pelas empresas, e as confederações do comércio e da indústria recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF), alegando que a lei é inconstitucional.

O grupo DPSP, dono das bandeiras Drogarias Pacheco e São Paulo já conseguiu liminar na semana passada para não entregar os relatórios.

O prazo para entrega das informações acabou na última sexta-feira. De acordo com os ministérios do Trabalho e das Mulheres que vão elaborar o primeiro Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios, a ser divulgado nos próximos dias, 51.073 empresas já enviaram os dados, o que representa quase a totalidade da meta estipulada pelo governo.

Dados preliminares apontam que apenas 31% das empresas com mais de cem funcionários têm ação de incentivo à contratação de mulheres e só 39% têm estratégias de promoção por gênero. As informações enviadas mostram que 40% oferecem creche e 78% não adotam licença de paternidade estendida.

Priscila Kirchhoff, sócia do Trench Rossi Watanabe, avalia que a divulgação do relatório pode levar a distorções a depender da forma como serão publicadas. Segundo ela, o critério usado pelo governo no formulário pode induzir a uma falsa ideia de pagamento diferenciado por sexo.

Igualdade de gênero — Foto: Criação O Globo

E o dado pode esconder critérios estabelecidos pela legislação trabalhista, como o tempo na função, de participação na empresa, além da produtividade e qualidade do trabalho:

— Os salários foram agrupados de acordo com dez grandes grupos segundo a CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), em que as empresas preencheram formulários a partir dos dados do eSocial ou do Emprega Brasil. Mas isso leva a distorções. Podem ter pessoas em funções distintas e valores distintos.

Por ora, há um temor generalizado, mas a recomendação é de que cada empresa analise caso a caso sua posição frente à nova lei, diz a advogada:

— Se por um lado, há um risco de dano reputacional caso você judicialize (a medida), também há o risco caso você publique um relatório cheio de distorções — avalia Priscila.

Ministra: ‘retrocesso’

O Ministério do Trabalho afirma que a intenção não é expor dados individuais. A pasta explica que, a partir do dia 20, vai questionar as empresas sobre as diferenças e elas terão um prazo para justificar as disparidades encontradas.

Em seguida, caso haja diferenças não justificadas, o governo vai propor a cada empresa a construção de um plano de equidade, junto a sindicatos. Se as companhias não se adequarem às regras, aí sim será aplicada a multa de 3% da folha de pagamento.

Na quarta-feira, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional do Comércio (CNC) foram ao STF alegando que a lei não prevê brecha para as empresas se defenderem de possíveis disparidades salariais.

As confederações afirmam que a lei desconsidera possíveis diferenças salariais por antiguidade e formação do empregado, levando a diferentes níveis salariais dentro do mesmo cargo, reconhecidas pela CLT.

“A lei prevê penalidade ao empregador, ainda que este possa se justificar com base nas situações lícitas de diferenças salariais previstas nas leis do trabalho”, diz a nota.

Em nota, o grupo DPSP, dono das Drogarias Pacheco e São Paulo, informou que a ação na Justiça foi adotada para “evitar o risco de exposição de informações sensíveis de colaboradores e estratégias de negócios da empresa, resguardando os direitos à privacidade e proteção de dados, o sigilo empresarial e a garantia da livre concorrência”. Segundo a empresa, 64,4% dos cargos de liderança são ocupados por mulheres.

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, criticou a iniciativa das empresas e chamou a ação no STF de “retrocesso”.

— Eu ainda estou impactada com o fato de as empresas terem entrado no STF. Isso significa um atraso. Significa um desrespeito à luta das mulheres em muitos anos. É uma prova de que só lutando muito para não demorarmos 131 anos para termos igualdade.

A divulgação dos salários também incomoda as empresas, que afirmaram na argumentação ao STF, que o sigilo dos salários não seria para “esconder ilícitos”, mas para a “estratégia de captação e manutenção de bons profissionais”. A ministra rebate esse ponto:

— Não é dizer para o governo, é dizer para a população o quanto a empresa está pagando. Entrar (no STF) contra o relatório é não querer igualdade salarial. Temos que convencer as empresas que salários iguais fazem bem para o país, para a empresa, para a democracia e para as mulheres.

Extrapola a lei

Christina Fontenelle, sócia da área trabalhista do Bichara Advogados, afirma que algumas empresas entraram com pedidos para não precisarem enviar dados ao governo, enquanto outras tentam não terem seus relatórios publicados.

Ela representa uma companhia de telecomunicações que conseguiu uma liminar. Na sentença, a 22ª Vara Cível Federal de São Paulo determina que o governo só pode divulgar o documento depois de assegurado o direito de defesa:

—A Justiça tem reconhecido que o decreto e a portaria extrapolam a lei.

Como exemplo, Christina cita a participação do sindicato na elaboração do plano de ação para equidade.

Outro tema presente nas liminares concedidas é a privacidade. A previsão inicial, segundo a sócia da parte trabalhista e sindical do Mattos Filho, Érika Seddon, era que o relatório poderiam identificar os empregados, o que é proibido pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Segundo o Banco Mundial, 35 países têm medidas de transparência salarial ou de fiscalização para abordar a diferença salarial de gênero, como Reino Unido, Austrália, Islândia, França e Peru. Levantamento anual “Women in Work Index”, da consultoria PwC, revela que o gap salarial médio entre homens e mulheres nos países da OCDE é de 13,5%.

A Islândia está no topo da lista. Em 2018, o país aprovou lei que exige que as empresas provem que pagam salário igual para homens e mulheres.


Fonte: O GLOBO