A arriscada travessia usada por imigrantes rumo aos EUA está levando à região dezenas de pessoas que, além de imagens, querem influenciar o debates sobre o tema no país

Ayub Ibrahim havia acabado de sair da selva. Seus pés ainda doíam. Um mês antes, ele havia deixado sua casa na Somália, fugindo da guerra civil, passando por Turquia, Brasil e finalmente cruzando a pé os cerca de 100 km de mata intocada conhecida como a selva de Darién.

Descansando em um acampamento de imigrantes no Panamá, com centenas de outras pessoas recém-chegadas, ele se viu cercado por alguns americanos com câmeras de vídeo.

— Você gosta de pessoas como Ilhan Omar — um deles perguntou. — O que acha de Joe Biden.

Ibrahim, de 20 anos, respondeu. Disse que gostava e admirava Omar, a primeira somaliana-americana a ser eleita para a Câmara dos EUA. Ele não segue a política dos Estados Unidos, mas acredita que Biden seja um bom presidente. Quando questionado se Biden ou o ex-presidente Donald Trump seria melhor para os imigrantes, ele escolheu o democrata.

Mais tarde, Ibrahim disse ter se sentido em uma emboscada e confuso com as questões. Não era sua intenção fazer uma declaração política, mas era tarde demais.

Uma das pessoas que o entrevistaram, Laura Loomer, uma ativista de extrema direita e ex-candidata ao Congresso, publicou um vídeo editado da conversa. As imagens explodiram na internet, com mais de 2 milhões de visualizações no X, anteriormente conhecido como Twitter. A descrição dizia: “Imigrantes ilegais somalianos declaram apoio a Ilhan Omar e Joe Biden de dentro de um acampamento de imigrantes no Panamá”.

Conforme a imigração se torna um tema dominante na corrida eleitoral de 2024, a imprensa de direita tem sido invadida por vídeos grosseiros e por vezes enganosos de imigrantes surgindo da selva de Darién, uma faixa sem estradas na floresta panamenha que se tornou um gargalo para milhares de pessoas a caminho dos EUA.

Imigrantes cruzam trecho da selva de Darién, no Panamá — Foto: Federico Rios/The New York Times

As imagens são apresentadas como uma prova do que os republicanos descrevem como uma “invasão” de terroristas islâmicos, espiões chineses e criminosos da América Latina. Publicados em redes sociais, os vídeos culpam Biden pela migração e sugerem, falsamente, que os democratas a estão encorajando para criar novos e ilegais eleitores. Organizações de ajuda humanitária são apresentadas como aproveitadoras, que fazem dinheiro da miséria humana.

O New York Times rastreou boa parte do conteúdo ao trabalho de Michael Yon, um ex-boina verde [Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos] que nos últimos três anos se tornou um guia para jornalistas de direita, políticos e influenciadores que querem ver a selva de Darién de perto.

Além de Loomer, a lista de viajantes inclui os deputados republicanos Tom Tiffany e Burgess Owens, repórteres, produtores e apresentadores de podcasts do The Epoch Times, um jornal de direita, e correspondentes da Real America Voice, a companhia de mídia digital que abriga o podcast de Steve Bannon.

Vídeos e outros conteúdos feitos pelos visitantes também foram usados como imagens de apoio para conversas sobre a imigração na Fox News, para o programa de Tucker Carlson e até por Trump. Na sexta passada, o candidato republicano publicou um vídeo no Truth Social feito por Loomer. Ele incluía trechos da sua viagem ao Panamá, incluindo um pedaço da conversa com Ibrahim.

Tampão de Darién fica entre o Panamá e a Colômbia, rota de muitos imigrantes que tentam chegar à América do Norte — Foto: Editoria de Arte

A reportagem do New York Times acompanhou um grupo que visitava os acampamentos perto da selva de Darién, observando e gravando as entrevistas feitas com imigrantes. Os repórteres, produtores e influenciadores cercaram pessoas da África, China e Oriente Médio, as inundando com questões politicamente carregadas.

As publicações amplificaram o que perceberam ser momentos interessantes, ao mesmo tempo em que deixaram de lado respostas que desafiavam seus pontos de vista.

Quando questionado se ele havia recebido dinheiro da ONU ou de outros grupos de ajuda humanitária, Ibrahim disse que não. Ele também afirmou que, como muçulmano, apoiava que mulheres tivessem os mesmos direitos que os homens, e era contra a discriminação de pessoas LGBTQIAP+. Essas partes foram cortadas dos vídeos de Loomer.

'Tendências jihadistas'

Em uma entrevista ao Infowars, a plataforma de extrema direita, Loomer questionou se os muçulmanos com quem ela conversou eram “jihadistas ou pessoas com tendências jihadistas”.

No dia seguinte, ao embarcar em um ônibus para a Costa Rica, Ibrahim disse que se arrependeu da experiência.

— Ela quis criar uma imagem negativa dos imigrantes no mundo — afirmou, se referindo a Loomer. — Suas perguntas não foram justas.

Trechos de vídeos de imigrantes no Panamá se tornaram armas na batalha de informações travada contra a imigração, afirmam especialistas. O conteúdo, repetido muitas vezes, é muito eficaz, particularmente ao criar a percepção da ameaça de violência, disse Guadalupe Correa-Cabrera, professora de Ciências Políticas na Universidade George Mason, que estudou o impacto das redes sociais sobre a imigração.

As imagens, ela nota, tendem a focar em homens jovens, ao mesmo tempo em que excluem mulheres e crianças, que poderiam gerar respostas mais simpáticas. Os imigrantes são citados como “homens em idade militar” e “invasores”, e suas alegações de perseguição política em seus países são tratadas como mentiras.

— Isso vem diretamente do guia de como construir uma narrativa — disse Correa-Cabrera.

Michael Yon, 'guia' de influenciadores na selva de Darién, conversa com imigrantes — Foto: Federico Rios/The New York Times

Os influenciadores e personalidades da mídia nas viagens argumentam que estão jogando luz sobre uma crise que os veículos de imprensa tradicionais menosprezam ou se recusam a cobrir. Loomer se descreve como uma jornalista.

— Minhas reportagens são poderosas — disse.

Visão distorcida

A atenção dada aos imigrantes muçulmanos e chineses pode criar uma impressão distorcida. Cerca de 90% das 520 mil pessoas que passaram por Darién no ano passado eram da América do Sul e do Caribe, segundo o governo do Panamá. A maioria deles vinha da Venezuela, Haiti e Equador, países que enfrentam problemas econômicos e convulsões sociais.

O número de imigrantes da África, China e Oriente Médio que passam pela selva de Darién explodiu nos últimos dois anos, mas corresponde a menos de 8% do total. O Panamá analisa pessoas dessas áreas em busca de potenciais conexões criminosas ou terroristas. Até agora, a ameaça terrorista que eles podem representar é apenas teórica. Vários estudos acadêmicos não encontraram correlação entre a imigração e atos de terroriso, conforme uma revisão do Conselho de Relações Exteriores determinou no ano passado.

Os críticos também alertam que a cobertura inflamada desses problemas complexos agrava ainda mais a crise humanitária.

— A representação equivocada dos imigrantes que atravessam a selva como se fosse invasores ou ilegais põe as vidas deles em risco — disse Sandie Blanchet, representante do Unicef no Panamá. — Isso pode até justificar tratamentos violentos contra eles.

Yon e suas excursões têm como alvo também as organizações humanitárias que trabalham na área, especialmente uma agência da ONU: a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Esses grupos, dizem, incentivam a imigração ao fornecer assistência médica, apoio psicológico e nutrição antes e depois da jornada.

A ajuda é paga por contribuições governamentais e doadores privados, fundos que Yon chama de “lucros” que motivam as organizações a motivarem mais e mais imigrações.

Diego Beltran, diretor interino para as Américas do Norte e Central e para o Caribe da OIM, questiona essa caracterização, apontando que a ONU não lucra com suas atividades e que trabalha para encontrar alternativas para a imigração. A agência ajudou mais de 4 milhões de pessoas a encontrar um lar na América do Sul, ao invés de seguirem para os EUA, ele afirma.

— Há muita desinformação nesta área — diz Beltran. — Está claro que a imigração é um tema político crescente em vários países, mas não concordamos com os esforços para estigmatizar os imigrantes e para incentivar a xenofobia.

Outro alvo é a HIAS, anteriormente conhecida como Sociedade Hebraica de Ajuda a Imigrantes, um grupo sem fins lucrativos dos EUA que oferece serviços, incluindo apoio legal e psicológico. As viagens de Yon questionou os mapas em tamanho grande presentes nas unidades da organização no Panamá, alegando que eles encorajam as pessoas a fazer a travessia.

A HIAS diz que os mapas, que não trazem qualquer rota específica pela selva, servem para ajudar as pessoas a encontrarem os postos de ajuda.

— Nós certamente não encorajamos a imigração — disse Mark Hetfield, presidente da HIAS. — Tudo o que fazemos é oferecer uma forma para ajudar as pessoas que aqui chegam.

Ele afirma que muitas das críticas ao grupo têm base no antissemitismo, apontando que o homem que matou 11 pessoas em uma sinagoga em Pittsburgh, em 2018, frequentemente fazia publicações contra a HIAS.

Michael Yon (em primeiro plano), um ex-militar que hoje é guia de ativistas de extrema direita na selva de Darién — Foto: Federico Rios/The New York Times

Yon também alega, sem provas, que o grupo está ajudando imigrantes perigosos a entrar nos EUA.

— Eles vão gritar “Allahu Akbar” [“Deus é Grande”, em árabe] e depois vão atirar — disse Yon, completando com um palavrão, em um discurso contra a imigração no mês passado no Texas. — E eles vão atravessar a fronteira, financiados com dinheiro judaico.

Há alguma evidência de que a narrativa cultivada por Yon e outros esteja produzindo algum impacto. Este mês, depois que influenciadores que visitaram a área publicaram queixas sobre os mapas mantidos por outros grupos internacionais, o diretor do Serviço Migratório do Panamá levantou uma questão similar, os chamando de “irresponsáveis”.

A HIAS retirou alguns dos mapas, alegando “razões de segurança”.

Yon cultivou laços próximos com o governo panamenho, e particularmente com a guarda de fronteira. Suas excursões frequentemente receberam acesso irrestrito a instalações para imigrantes, de onde jornalistas da mídia tradicional são vetados.

Uma resposta sobre como ele conseguiu esse acesso é Oscar Ramirez, um ativista mexicano e correspondente para a Real America Voice, e que desde o ano passado trabalha com Yon no Panamá como um assistente e tradutor. Com roupas militares, ele saúda os oficiais de fronteira com abraços em postos de controle e recebe escolta armada através da própria selva de Darién. E ao mesmo tempo em que ataca organizações internacionais em redes sociais, chama a guarda de fronteira de “os anjos da selva”.

Recentemente, em um fórum de segurança na Cidade do Panamá, Nelson Moreno, um oficial de protocolo da guarda de fronteira, descreveu Ramirez como “parte integrante de nosso DNA fronteiriço”.

Dois dias antes, um guarda de fronteira parou jornalistas do New York Times viajando até uma vila indígena onde Ramirez e Yon, ao lado de alguns influenciadores americanos, estavam filmando imigrantes. Apesar de não haver outras testemunhas do episódio, Loomer discutiu o tema em uma entrevista ao Infowars, no dia seguinte, ela disse que a agência considerava os profissionais um “risco de segurança”.

Yon depois disse ter sido informado sobre o incidente por fontes na região. Em uma entrevista, ele disse que ninguém dá um passo na selva de Darién “sem que ele seja informado”.


Fonte: O GLOBO