A dupla suava. Um segurava o busto de bronze pela máquina de escrever, outro pela cabeça. Era uma peça pesada. A noite estava especialmente escura — o que tornava difícil o caminho entre as lápides. Eles pararam por um instante para analisar o melhor caminho para sair do Cemitério São João Batista carregando a encomenda. Foi aí que ouviram a voz. Uma voz lenta, soturna, gutural.

— Invejo a burrice...

Um olhou para o outro que olhou para um. Tiveram ímpeto de largar no chão o objeto e sair correndo. Mas não. O serviço tinha sido encomendado — precisavam entregar.

— Tem alguém aí? – perguntou o primeiro esticando os olhos.

— Não tem ninguém — disse o outro. — Que maluquice.

Os dois ladrões respiraram fundo.

— Esse cara era escritor.

— Que cara?

— Esse da estátua.

— Não é estátua. É busto. Do peito pra cima.

— Ah...

— Escrevia o quê?

— Sei lá. Negócio de teatro. E esporte. Era tricolor.

— Tricolor?

Relaxaram um pouco e retomaram o passo. Já conseguiam ver as luzes da rua quando, de repente, a voz retornou para completar a frase:

— Invejo a burrice... porque é eterna.

Dessa vez não havia dúvidas. Alguém estava falando com eles. Mas onde? Olharam em volta, se esgueiraram. Nada.

— É fantasma essa p... — disse José, o ladravaz mais alto.

— Tem alguém aqui — disse Antonio, que era gordo e baixinho.

A voz engatou outra frase:

— Na hora de morrer...

Um medo profundo e abissal percorreu a espinha de ambos, paralisando cada músculo.

— Quem tá aí? — gritou José.

— Que p... é essa? — ecoou Antonio.

Encostaram num túmulo alto, como que encurralados. O ímpeto de correr era grande. Largar tudo, deixar pra lá a grana que aquele bronze derretido iria valer. Repousaram o busto no chão. E de repente, a voz, que parecia vir de uma garganta milenar, soou mais próxima.

— Na hora de morrer, e quando sabe que está morrendo...

A dupla olhou para baixo. E verificou que o busto tinha dois olhos abertos, com branco de gente e pupilas. E a boca se movia:

— ...todo homem tem um olhar de contínuo.

Um horror absoluto tomou a dupla de larápios. As pernas se apossaram da vontade e qualquer ambição financeira desapareceu. José e Antônio saíram em disparada, abandonando o busto de Nelson Rodrigues numa esquina de cemitério. 

O impulso da desabalada carreira fez a peça de bronze rolar entre os túmulos e cair numa fresta — penetrando num destes espaços intermediários que separam este mundo de outro, esta dimensão de muitas outras.

Uma versão menos crível diz que o busto foi realmente roubado e derretido pelos ladrões de memória que militam na Terra da Santa Cruz há 524 anos.

É uma versão mais triste e menos realista, claro. Caberia lembrar aos eventuais meliantes que não convém atiçar o Sobrenatural — especialmente de Almeida. Mas nessa alternativa há também uma visão quase alegre. Uma vez reconfigurada, a substância dos restos imortais de Nelson se espalharia pelo Rio de Janeiro — numa pulseira, num colar, num tubo ou conexão. E sua verve, seu espírito e suas hipérboles passeariam de novo, ainda que anonimamente, pela cidade de São Sebastião.


Fonte: O GLOBO