Twix, que foi posto para fora ao ser confundido com um felino abandonado, tornou-se válvula de escape para os russos e ajudou governo a desviar atenção dos problemas gerados pela guerra

Uma tragédia que tomou conta da Rússia por dias. Os parlamentares federais convocaram um comitê especial e uma investigação foi iniciada, enquanto centenas de voluntários procuravam pela vítima em temperaturas abaixo de zero, e a mídia estatal transmitia atualizações ao vivo sobre as repercussões. Por fim, a vítima — o gato Twix — foi encontrada morta.

Um clamor nacional sobre a morte de um animal de estimação que foi jogado por engano de um trem de longa distância por um funcionário destacou tanto os limites quanto a demanda por um escape emocional na Rússia em tempos de guerra.

Uma pesquisa nacional descobriu que cerca de dois em cada três russos estavam interessados no Twix, uma proporção muito alta em um país onde as pessoas estão cada vez mais atentas às notícias negativas, como a guerra na Ucrânia, de acordo com Denis Volkov, diretor do maior instituto de pesquisa independente do país, o Levada Center, que realizou a sondagem.

Socorristas atuam no local de um ataque de míssil russo em um prédio residencial em Kiev, na terça-feira, na Ucrânia — Foto: Laura Boushnak/The New York Times

Uma combinação de propaganda, repressão à dissidência e cansaço do público com o conflito inconclusivo transformou as curiosidades da Internet em um foco de atenção nacional por dias e até semanas. No mês passado, um vídeo de um influenciador russo jogando seu bebê de dois meses em um banco de neve em uma aparente brincadeira recebeu milhares de comentários, a maioria deles negativos, e levou a uma investigação criminal.

Em parte catarse, em parte teatro político, eventos como a morte de Twix estão proporcionando aos russos raras oportunidades de desabafar e se relacionar com pessoas que tenham a mesma opinião, sem entrar em conflito com a polícia ou com os agentes de censura.

— As pessoas se cansaram das adversidades políticas, e aqui temos uma criatura indefesa que criou toda essa comoção — disse Olga Kudriashova, uma aposentada que organizou uma busca de uma semana por Twix, um macho ruivo de 4 anos de idade, na capital da província de Kirov, onde as temperaturas chegaram a 30 graus negativos à noite. — É a injustiça de tudo isso, a indignação.

O governo do presidente Vladimir Putin há muito tempo entende o valor de fornecer válvulas de escape para o descontentamento público, à medida que gradualmente monopoliza o poder e exclui qualquer alternativa ao seu governo. A história do Twix é a mais adequada para o tipo de notícia que o governo russo espera intensificar.

— Essa história baixou a temperatura e ajudou a desviar a atenção da escuridão [como os horrores da guerra e o aumento dos preços dos alimentos] — disse Volkov, diretor do Levada Center.

Mobilização intensa

A história de como uma tragédia local com um animal de estimação passou a dominar a conversa nacional é um estudo de caso sobre como a informação se espalha na Rússia moderna. Kudriashova, a voluntária, disse que o dono de Twix, Edgar Gaifullin, entrou em contato com ela pelas redes sociais em 12 de janeiro e pediu ajuda para encontrar o gato, que estava viajando no trem público com um de seus parentes.

De acordo com Gaifullin e a empresa Russian Railways, um funcionário do trem confundiu Twix com um animal abandonado e jogou o gato de um vagão de passageiros quando o trem parou em Kirov, no noroeste do país. Kudriashova começou a postar sobre o gato desaparecido em grupos locais de conversa sobre animais. O esforço de busca mobilizou centenas de voluntários de toda a região de Kirov, atraindo a cobertura dos meios de comunicação locais e, por fim, a atenção da televisão estatal.

Os gatos tendem a dominar a Internet em todos os lugares, mas o conteúdo felino é particularmente popular na Rússia. Quase metade dos lares russos possui um gato, uma das taxas mais altas do mundo. As façanhas dos gatos são cobertas com destaque na mídia nacional, e uma nova série de televisão russa chamada "Catastrophe" não é sobre a guerra, como alguns podem supor, mas sobre um gato laranja de espírito livre que fala.

A descoberta do corpo sem vida de Twix, uma semana depois do início das buscas, trouxe um elemento emocional que catapultou a vítima felpuda para uma causa célebre, com uma petição on-line pedindo a punição do atendente infrator, que rapidamente reuniu 380 mil assinaturas. A máquina de propaganda reagiu.

Os parlamentares do partido governista formaram um comitê no Congresso para revisar as regras de transporte de bichos. Uma promotoria pública anunciou que estava investigando um possível caso de crueldade contra animais. Um ativista conservador propôs a construção de uma estátua do Twix em Kirov. E dezenas de comentaristas pró-governo deram palpites sobre o papel do Twix no Zeitgeist da Rússia.

"O que se sabe sobre a morte do gato Twix: principais acontecimentos", dizia a manchete de um artigo de um jornal afiliado ao governo, o Izvestia.

Os repórteres pressionaram o chefe da estatal Russian Railways sobre o episódio, usando um discurso duro, raramente visto no interrogatório de uma autoridade de alto escalão.

— Tenho dois cachorros e um gato em casa — disse o executivo da ferrovia, Oleg Belozerov, que dirige a maior empregadora do país e supervisiona cerca de 160.000 quilômetros de trilhos, a jornalistas estatais, acrescentando: — Alguém poderia me compensar por sua perda? Não tenho certeza.

Ele descreveu a morte do gato como "força maior", um termo legal para uma catástrofe imprevisível, geralmente reservada para cataclismos naturais e ataques terroristas. A Russian Railways suspendeu o atendente, abriu uma investigação interna e alterou suas diretrizes de manuseio de animais apenas alguns dias após a morte de Twix. (O atendente, cujo nome não foi divulgado, não comentou o que aconteceu).

Em um comunicado, a empresa pediu desculpas a Gaifullin, o proprietário de Twix, mas culpou a pessoa que acompanhava o animal por tê-lo perdido de vista.

Escape da realidade

A mídia estatal ajudou a transformar Gaifullin em uma personalidade menor da mídia. Ele contratou um advogado para lidar com um pedido de indenização contra a empresa de trens, criou uma conta oficial no Telegram para o felino e é regularmente entrevistado pela imprensa do governo.

Gato Twix — Foto: Reprodução

Volkov, o diretor do centro de pesquisas, disse que a maioria dos entrevistados em sua pesquisa culpou a pessoa que acompanhava Twix por sua morte. O diretor do Levada Center disse que o escândalo do gato desviou grande parte da conversa nacional do descontentamento com a escassez de ovos, falhas de aquecimento em um inverno frio e outros problemas negativos de qualidade de vida.

A indignação pública aprovada pelo Estado geralmente é direcionada ao que o governo considera comportamento inadequado ou imoral, o que, por sua vez, apoia o esforço maior de Putin para se apresentar como um campeão global do que ele chama de "valores tradicionais".

Mas a resposta rápida e aparentemente desproporcional do governo aos fenômenos virais também permitiu que ele criasse um senso de responsabilização em um momento em que a expressão política genuína é cada vez mais criminalizada. Na Rússia, reclamar da morte de um gato é, obviamente, muito mais seguro do que expressar uma opinião política ou protestar contra a guerra.

— O país perdeu a possibilidade de se expressar livremente e de ser humano — disse Boris B. Nadezhdin, um candidato antiguerra que planeja concorrer contra Putin, em um programa de entrevistas esta semana, com uma grande foto de Twix ao fundo. — Expressar apoio a um gatinho que você nunca viu na vida é mostrar humanidade.


Fonte: O GLOBO