Levantamento ainda mostra dificuldade de atingidos das cidades vizinhas em conseguirem sucesso na Justiça

Moradora do Córrego do Feijão, V. Souza, que prefere não revelar o primeiro nome, é uma das milhares de pessoas que teve a vida revirada após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, há cinco anos. Por ficar em um ponto alto, sua casa não foi atingida pelos rejeitos e serviu como abrigo para muitos vizinhos, além de ter sido a base para as operações de resgate dos bombeiros, com sobrevoos diários de helicópteros. 

Além do impacto à rotina e o prejuízo financeiro por ter ficado sem trabalho como diarista, Vanice perdeu seu enteado e uma tia na tragédia e usa remédios contra depressão até hoje. Em 2021, a Justiça determinou que ela recebesse uma indenização de R$150 mil, mas, no ano seguinte, após a Vale recorrer, a segunda instância diminuiu o valor para R$ 40 mil.

A decisão está longe de ser rara. Segundo um estudo feito pelo Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab), uma das organizações designadas para prestar assessoria técnica à população atingida, 75% das decisões em segunda instância analisadas na amostragem foram desfavoráveis às vítimas. No caso de Vanice, o tribunal entendeu que "a indenização fixada em sentença merece adequação, pois não restou comprovado se tratar de dano extremo sofrido".

— Foi muito difícil e sofrido, pois perdi muitos parentes e amigos. Fomos afetados de vários jeitos, ficamos sem energia vários dias. Só não passei por necessidade pois tivemos ajuda através de doações — explica Vanice, que por mais de um mês precisou conviver com 20 helicópteros sobrevoando a 50 metros de seu telhado. — Minha casa serviu de ponto de apoio. Fiquei com depressão tendo que tomar remédio depois do abalo emocional pela perda de parente e amigos e principalmente pelo sofrimento de ver os aviões passando com corpos pendurados.

Depois da decisão em primeira instância ter determinado uma indenização de R$150 mil, os desembargadores do TJ-MG mudaram a decisão. Em seu voto, o desembargador João Cancio concordou com as alegações de dano moral pelo rompimento da barragem, já que Vanice morava dentro da chamada Zona de Autossalvamento (ZAS) — a 30 minutos ou 10 quilômetros do ponto de rompimento — , mas discordou dos danos morais pelas mortes de amigos e parentes e pelos danos psicológicos. O magistrado entendeu que ela não comprovou abalo psíquico e também não anexou provas de ligações afetivas com os amigos ou do parentesco com sua tia e enteado.

O levantamento analisou uma amostra de 319 dos 464 acórdãos publicados até março do ano passado. Outra dificuldade apontada pelo estudo é de moradores dos municípios mais distantes em serem indenizados. Mesmo afetados pela interdição do Rio Paraopeba, o que afeta o acesso à água e os cultivos de zonas rurais, muitos atingidos não conseguem sucesso na Justiça. Dos 29 casos com vitórias na segunda instância, 19 são de moradores de Brumadinho.

— Para o Judiciário brasileiro é muito difícil enxergar o atingido para além de quem perdeu familiar ou estava na zona de rompimento. Pessoas que moram em outro município da bacia não estão sendo reconhecidos — explica Sarah Zuanon, analista jurídica da Nacab. — O rejeito foi jogado no rio, então afeta muitas pessoas. A gente tenta combater a visão restrita do que é ser atingido nesse rompimento. Há o pescador e o agricultor, por exemplo, que vivem a centenas de quilômetros de distância da barragem.

Em 2021, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o governo de Minas e a Vale assinaram um Acordo Judicial de Reparação Integral que prevê o pagamento de R$ 37,68 bilhões em 160 projetos. De acordo com a Vale, 68% do montante já foram executados. Nessa ação, há a previsão de pagamentos de indenizações individuais, mas a justiça ainda não determinou sua execução, o que se explicaria, segundo Zuanon, pela complexidade do caso.

Por isso, muitos moradores optaram pelas ações individuais. Foi o caso de Tatiane Mendes, que na época da tragédia vivia no assentamento Queima Fogo, no município de Pompéu. Ela vivia da agropecuária, e o Rio Paraopeba era a única fonte de água daquela comunidade. Hoje, ela recebe meio salário mínimo pelo Programa de Transferência de Renda gerenciado pela FGV, executado dentro do acordo com a Vale, e deixou o assentamento porque não conseguia mais produzir.

— A gente sabia que o rompimento teria proporção muito grande, mas não imaginava que chegaria a mais de 200 quilômetros, em Pompéu. O estado de vulnerabilidade na região aumentou bastante. A maioria dependia do turismo ou da pesca, mas agora não consegue escoar a produção — explica Mendes, que criou um grupo chamado Guerreiras para lutar pela reparação, e ano passado entrou na Justiça com um pedido de indenização, ainda sem sentença. — A Vale não me reconhece como atingida, não tentei acordo por esse motivo.

Mas, além de a Justiça dar prioridade aos residentes próximos do rompimento, muitos atingidos de zonas mais distantes têm dificuldade ao produzir provas. Na regiões 4 e 5, por exemplo, as mais longes de Brumadinho, há muitas comunidades rurais. Tatiane Mendes afirma que diversos moradores vêm sofrendo por não possuírem documentos exigidos para as reparações. Nos tribunais, o problema se repete.

— Há instrumentos previstos na legislação para mitigar essa diferença de forças, quando um lado do processo é muito mais rico do que o outro, mas não vimos isso sendo aplicado. Uma ferramenta é a inversão do ônus da prova, a depender do caso a Vale que deveria provar que não cometeu o dano. Nas poucas vezes em que esse instrumento foi usado na primeira instância, a Vale conseguiu reverter depois — explica Sarah Zuanon, que acrescenta que a maioria dos moradores não tem condição de contratar perícias e assistências técnicas.

Procurada, a Vale S.A explicou que extrajudicialmente já fechou acordos com 15,4 mil famílias, em um pagamento total de R$ 3m5 bilhões. A mineradora ainda reafirmou “seu respeito às famílias impactadas”.


Fonte: O GLOBO