Entenda como funcionam as carteiras digitais que realizam 80% das transações financeiras do país

O plano de investimentos em pesquisa e desenvolvimento estabelecido em 2006 para o país chegar à década atual com perfil inovador, a expansão da infraestrutura de telecomunicações, o incentivo ao e-commerce para desenvolvimento do interior e até a convivência única entre regimes antagônicos, um modelo econômico entre o capitalismo de Estado e socialismo de mercado, são alguns dos ingredientes que sustentaram a digitalização dos pagamentos na China e o virtual desaparecimento do dinheiro.

O cenário contribuiu para o desenvolvimento das duas gigantes que dominam o mercado local. De um lado o Ant, grupo originário da plataforma de e-commerce Alibaba, cuja carteira digital Alipay nasceu em 2013. No mesmo ano surgiu o WechatPay (Weixin Pay, por lá), da Tencent, nascida em 1998 para fornecer mensageria instantânea e e-mail móvel, que ganhou o mundo dos games, de conteúdo e das mensagens.

Ambas contam com mais de 1 bilhão de clientes cada e criaram superapps que embalam desde troca de mensagens e streaming a vendas de produtos e acesso a serviços públicos e transportes, em um modelo ainda sem igual no mundo. As duas oferecem serviços financeiros centralizados no modelo de carteira eletrônica (wallets), com pagamentos a partir de montantes depositados na conta do cliente, favorecidos pela baixa penetração dos cartões de crédito tradicionais e pelo volume do mercado local.

O avanço das carteiras, responsáveis por mais de 80% do volume transacionado no país, provocou o virtual desaparecimento do dinheiro, restrito a menos de 2% do total de pagamentos efetuados no país, conforme dados levantados pela oitava edição do relatório Global Payments, da fornecedora de tecnologia financeira FIS.

— Os meios de pagamento chineses não surgiram da bancarização, mas da ampliação do comércio eletrônico— diz Boanerges Ramos Freire, presidente da consultoria especializada em serviços financeiros Boanerges & Cia.

Segundo ele, a concentração nos dois ecossistemas difere dos demais mercados do globo, onde o desenvolvimento de serviços tomou o caminho da especialização distribuída em empresas diferentes. O avanço tecnológico também vai adiante de outros mercados, com domínio acelerado de inteligência artificial e vertentes como biometria para pagamentos presenciais ou a distância. Entretanto, o especialista avalia que, no âmbito de serviços financeiros, falta evolução em instrumentos como crédito para consumo, investimento, poupança ou seguros.

Para Rodrigo Mulinare, diretor do comitê de tecnologia e inovação da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e diretor de tecnologia do Banco do Brasil, a diferença decorre do perfil do sistema bancário local.

— Os bancos são repositório de dinheiro, quase um backoffice. As carteiras respondem pela interface de uso — diz Mulinare. A segmentação é outra característica, há instituições responsáveis por construção civil, onde se concentra todo o financiamento imobiliário do país, ou comércio, por exemplo.

O modelo contrasta com o vigente no Brasil, onde as instituições oferecem portfólio financeiro amplo, de pagamentos a previdência privada, com interfaces avançadas e interação intensa com clientes. Enquanto a China domina o planeta em carteiras digitais, o Brasil ganhou destaque com a velocidade do crescimento do Pix, um dos ingredientes do cenário mais amplo do open finance, sistema de compartilhamento e integração de informações e transações financeiras em desenvolvimento no país.

De acordo com os números do Banco Central, mais de 143 milhões de pessoas físicas estavam cadastradas no Pix em novembro de 2023. A novidade, padronizada e consolidada, derrubou instrumentos como DOC (que foi extinto), boletos e cartões de débito, evoluiu com lançamentos como saque e troco, ajudou a trazer bancarizados e não bancarizados para os canais digitais e tem pela frente etapas já previstas, como pagamentos recorrentes e internacionais. 

O Pix levou o Brasil a ganhar destaque no relatório da FIS como o segundo maior mercado mundial em transferências instantâneas entre contas. O destaque se estende ao open finance, com 40 milhões de consentimentos registrados em outubro, diz Mulinaro.

Em comum, China e Brasil espelham em seus modelos de pagamentos digitais o resultado de políticas bem desenhadas.

— São decisões de longo prazo— diz Carla Beni Menezes de Aguiar, economista e professora de MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Entretanto, os países se distanciam no quesito acesso. Enquanto o Brasil patina na interiorização da internet, obrigando o uso de papel moeda em regiões com dificuldade de acesso aos meios digitais, um dos pilares da expansão da China foi a infraestrutura de telecomunicações. No país, 60% dos habitantes já usam 5G e a internet já invadiu o interior do país, observa Larissa Wachholz, sócia da Vallya Participações, que morou cinco anos no país e ainda hoje viaja com frequência para lá.


Fonte: O GLOBO