No Brasil para abertura do Salão Carioca do Livro, ativista afirma que evasão escolar é desafio no país e que líderes globais devem 'acordar' para ajudar meninas no Afeganistão

Malala Yousafzai tinha 15 anos quando um homem armado entrou no ônibus escolar, chamou-a pelo nome e atirou três vezes. Era outubro de 2012, e sua história todos nós conhecemos bem: a cirurgia de emergência em Peshawar, em seu Paquistão natal, a recuperação em Birmingham, no Reino Unido, o discurso na ONU um ano após o atentado, a pessoa mais jovem a ganhar o Nobel da Paz. 

Mas a Malala que está no Brasil pela segunda vez não é mais uma menina. Tem 25 anos (completará 26 em julho), graduou-se em Filosofia, Política e Economia pela Universidade de Oxford e dá nome a um fundo que apoia e financia projetos de educação em nove países, incluindo o Brasil. Tem um livro publicado (“Eu sou Malala”, editado pela Companhia das Letras, vendeu mais de 350 mil exemplares no Brasil), um documentário que concorreu ao Oscar, casou-se.

Malala Yousafzai agora é uma mulher, mas mantém aceso o sonho da garota que fez o planeta torcer por sua recuperação: deseja que todas as meninas tenham acesso à educação de qualidade. É por isso que veio ao Rio, onde, hoje à noite, abrirá o Ler - Salão Carioca do Livro. Com mediação da jornalista Maju Coutinho, Malala falará para 8 mil pessoas no Maracanãzinho: professores, estudantes e integrantes de projetos de educação voltados para meninas e mulheres.

Em entrevista ao GLOBO, a ativista fala sobre educação, extremismo religioso e misoginia. Diz que é urgente uma ação internacional pelos direitos de meninas e mulheres no Afeganistão, mais uma vez reféns do Talibã, e que, mesmo dez anos após o ataque que quase lhe custou a vida, não parou de sonhar com um futuro diferente para garotas que, como ela, querem estudar.

— Imaginar é importante. Eu acredito nesse meu sonho e que podemos criar um mundo que seja mais justo e onde cada criança tenha acesso ao conhecimento, educação e informação necessários para construir um futuro para ela, sua comunidade e seu país — diz.

Em 2013, você e seu pai criaram o Fundo Malala, que apoia projetos educacionais voltados para meninas e mulheres em nove países. Por que colocou o Brasil entre eles?

Não olhamos apenas o aspecto macro. Se olharmos só para isso, o Brasil tem um panorama melhor do que outros países. O que me chamou atenção aqui é a alta evasão escolar, sobretudo em comunidades específicas. É de partir o coração que em aldeias indígenas e comunidades quilombolas apenas 30% das meninas completem o ciclo escolar. 

Isso é um enorme desafio para vocês. Eu aprendi na região de onde eu venho (Malala nasceu em Mingora, no Vale do Swat, norte do Paquistão) que muitas vezes não é dada a devida importância a certos grupos, especialmente os de baixa renda. Por isso escolhi o Brasil. É pessoal para mim trabalharmos com meninas de comunidades menos privilegiadas.

Seu fundo apoia 11 projetos brasileiros. Em que áreas eles atuam?

Chamamos esses 11 projetos de campeões da educação. Eles trabalham em áreas como pesquisa sobre discriminação racial e de gênero nas escolas, treinamento para educação contextualizada em quilombos e aldeias indígenas, proteção do direito à educação de meninas negras e o monitoramento de políticas públicas, orçamentos e do processo democrático nas esferas federal e estadual. 

O que todos eles têm em comum é o fato de colocarem meninas e mulheres para tomarem decisões. Não são inspirados nelas nem têm o foco nelas. Eles são liderados por elas. São as meninas e as mulheres que escrevem manifestos, organizam protestos, pesquisam e discutem seus futuros com as lideranças políticas do Brasil.

Essa liderança feminina faz falta nas discussões sobre extremismo religioso, já que os direitos de meninas e mulheres são os primeiros a serem banidos por narrativas radicais?

Certamente. Na maioria das religiões, os homens controlam a narrativa e usam a religião como uma desculpa para a sua misoginia. Se tirarmos deles o livro sagrado, facilmente encontrarão um outro livro para usar como desculpa. Então acho que é importante darmos às mulheres a chance de dividir com a sociedade as suas interpretações desses livros. 

Mas, de verdade, acredito que é ainda mais importante nos certificarmos de que todos tenham acesso a uma educação de qualidade que estimule o pensamento crítico. Por que isso? Porque só o pensamento crítico nos faz questionar as informações que recebemos.

As mulheres estão questionando o Talibã desde a saída das forças americanas do país, em agosto de 2021, mas parecem estar fazendo isso sozinhas. Elas foram abandonadas pela comunidade internacional?

Sempre esperamos que alguma coisa vai ser feita no mês que vem, ou no outro, mas quando vemos já passou um ano e meio desde que os EUA saíram e o Talibã proibiu que meninas e mulheres estudem. A História nos mostra que eles já fizeram isso no passado, então eu entendo que os líderes globais precisam acordar. Eles têm que ter a mesma urgência que as afegãs têm.

Isso inclui os países muçulmanos?

Sim, acredito que este também é o momento para os países muçulmanos se manifestarem. Nenhum deles, tecnicamente, proíbe que as mulheres se eduquem. Existem, é claro, narrativas de que mulheres muçulmanas não devem trabalhar ou estudar, e isso deve ser combatido. O que o Talibã faz é usar desculpas religiosas e culturais para satisfazer suas crenças misóginas. Os muçulmanos precisam dizer: “Não queremos que nossas meninas sejam tratadas assim.”

Você tem esperança de mudanças no Afeganistão?

Há uma coisa que está diferente agora. As meninas e mulheres do Afeganistão estão despertas. Elas ainda estão protestando, em Cabul e outras cidades, pelo seu direito à educação. Muitas entre elas foram presas, machucadas e torturadas. Essas mulheres têm colocado suas vidas em risco porque não veem um futuro sem educação. 

Sei que as ativistas estão procurando maneiras alternativas de criar acesso à educação. Elas organizam aulas online e criam escolas secretas, por exemplo. Por isso, acho que ainda há esperança. Mas repito que é preciso que os líderes globais acordem e que façam da ajuda humanitária uma prioridade porque a questão crítica no país agora é sobreviver.

Desde sua criação, o Fundo Malala apoiava projetos educacionais para meninas no Afeganistão. Esses ativistas e educadores conseguiram sair do país?

A maior parte conseguiu, mas isso levou muito tempo. Alguns tiveram que esperar meses para sair, foi muito difícil. E, é claro, há o desafio de chegar a um outro país e começar uma nova vida, conseguir escola para os filhos, um trabalho, adaptar-se. 

Admiro profundamente a coragem desses ativistas que, mesmo tendo que deixar seu país por terem suas vidas ameaçadas, estão criando uma nova rotina fora e continuam trabalhando por um Afeganistão pacífico. Mal posso imaginar como eles suportam viver tudo isso.

Nesses quase 11 anos depois do ataque, você se tornou um símbolo global pela educação de meninas. Onde se imagina nos próximos dez?

Se você me fizesse essa pergunta há dez anos, eu diria que gostaria de ver todas as meninas na escola. Para os próximos dez, tenho o mesmo sonho. Quero ver toda garota tendo acesso seguro à educação de boa qualidade, e quero isso em todo o mundo. Sei que é um sonho ambicioso, mas preciso me prender a ele, mesmo que leve muitas décadas mais. 

Toda criança tem o direito de aprender, brincar e estar em segurança no ambiente escolar. Infelizmente, milhões de meninas não têm essa oportunidade. Se há uma coisa que podemos fazer pelas próximas gerações é dar a elas a chance de explorar seus talentos e habilidades, de serem o melhor que conseguirem, de usar suas vozes e poderem aspirar a oportunidades de melhorar o mundo para todos nós.

Sonhar é importante?

Imaginar é importante. Eu acredito nesse meu sonho e que podemos criar um mundo que seja mais justo e onde cada criança tenha acesso ao conhecimento, educação e informação necessários para construir um futuro para ela, sua comunidade e seu país.

Soube que você é fã de “O Alquimista”, do Paulo Coelho.

Sim, foi um livro importante para mim. Quando ainda vivia no Paquistão, este foi um dos primeiros livros que eu li. Na escola, nós éramos limitados aos livros acadêmicos, então foi muita sorte encontrar “O Alquimista” e lê-lo. A história do menino que vai em busca de seus sonhos me inspirou e me deu a certeza da minha missão apesar dos obstáculos. Mas, hoje, tenho gostado particularmente de ler livros escritos por mulheres jovens, sobretudo os primeiros livros delas.

Por que os primeiros livros?

Porque todos temos receio de compartilhar nossas histórias. Eu vivo dizendo para as meninas contarem suas histórias, seja ficção ou não, porque isso é importante. Elas hesitam, e eu entendo que é preciso encorajá-las. Acho que, no fundo, o que eu gosto é de ver a perspectiva feminina desabrochando nos livros.


Fonte: O GLOBO