Grupo de 12 pessoas - entre elas um bebê e crianças - foi colocado em bote inflável e deixado ao relento no Mar Egeu; Comissão Europeia classificou o caso como 'preocupante'

Um grupo de imigrantes que buscava asilo já havia passado anos perambulando para escapar da guerra no Chifre da África. Eles mal haviam pisado na Europa, esperando começar uma nova vida, quando homens mascarados os cercaram e tiraram seus pertences.

Agora eles estavam amontoados no bote, balançando nas águas abertas e tentando se proteger do sol brilhante enquanto Naima Hassan Aden segurava seu bebê de 6 meses e chorava.

— Não esperávamos sobreviver naquele dia — disse Aden, uma jovem de 27 anos da Somália. — Quando eles estavam nos colocando no bote inflável, eles o fizeram sem piedade.

Sua provação poderia normalmente ter permanecido amplamente desconhecida, como a de tantos outros requerentes de asilo cujos relatos de maus-tratos foram rejeitados pelo governo grego. Mas um vídeo gravado por um ativista foi compartilhado com o The New York Times.

Uma investigação do NYT verificou e corroborou a filmagem. Também entrevistamos 11 requerentes de asilo da Somália, Eritreia e Etiópia que localizamos em um centro de detenção em Izmir, na costa turca.

Muitos ainda usavam as mesmas roupas que vestiam no vídeo. Eles contaram o que aconteceu, e os relatos corresponderam aos eventos do vídeo - antes que os repórteres do NYT mostrassem a filmagem. A altura e o tamanho aproximados dos adultos e das crianças também correspondiam.

O governo grego não respondeu aos repetidos pedidos de comentários. Mas, em campanha em Lesbos na semana passada, antes das eleições gerais de domingo, o primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis defendeu as políticas de migração “duras, mas justas” de seu governo e se gabou de uma queda de 90% na chegada de “migrantes ilegais”.

O governo sempre negou maltratar os requerentes de asilo e aponta para o fato de que carrega um fardo desproporcional de gerenciar os recém-chegados à Europa.

Mas o vídeo, fornecido por um trabalhador humanitário austríaco, Fayad Mulla, que passou a maior parte dos últimos dois anos e meio trabalhando na ilha e tentando documentar os abusos contra os imigrantes, pode ser a prova mais contundente até agora de que as autoridades gregas violaram leis internacionais e as normas da União Europeia que regem o tratamento dos requerentes de asilo.

Além de entrevistar os imigrantes na Turquia, o NYT verificou a filmagem fazendo uma análise quadro a quadro para identificar as pessoas no vídeo, geolocalizando os principais eventos e confirmando a hora e o dia usando dados de tráfego marítimo, bem como uma análise da posição do sol e das sombras visíveis.

Mostramos o vídeo pessoalmente a três altos funcionários da Comissão Europeia em Bruxelas, descrevendo como o verificamos. Mais tarde, em comentários por escrito, a Comissão disse que estava “preocupada com as filmagens” e que, embora não tivesse verificado o material por si mesma, levaria o assunto às autoridades gregas.

A Grécia “deve respeitar totalmente as obrigações sob as regras de asilo da UE e o direito internacional, incluindo garantir o acesso ao procedimento de asilo”, disse Anitta Hipper, porta-voz da Comissão Europeia para migração.

As autoridades gregas recusaram os pedidos de encontro pessoal para revisar o vídeo.

A Grécia e a União Europeia endureceram suas atitudes em relação aos migrantes após a chegada em 2015 e 2016 de mais de um milhão de refugiados da Síria, Iraque e outros lugares. A onda de recém-chegados reformulou a política europeia, inflamando as forças populistas de extrema direita que jogaram com a angústia nativista.

A Grécia está longe de ser a única a reprimir os migrantes. Polônia, Itália e Lituânia mudaram recentemente suas leis para tornar mais fácil repelir imigrantes e punir aqueles que os ajudam.

Mas os novos vídeos sugerem que as autoridades gregas foram ainda mais longe, recorrendo a expulsões extrajudiciais sub-reptícias que varrem até os mais vulneráveis ​​com a participação de suas forças marítimas.

— Pela vontade de Deus, conseguimos sobreviver — disse Aden.

Anatomia de uma deportação extrajudicial

Foi pouco depois do meio-dia de 11 de abril que uma van branca sem identificação dirigiu até uma pequena enseada com uma doca de madeira na ponta sul de Lesbos, de acordo com o vídeo de Mulla.

Enquanto a van seguia para a costa, dois homens que esperavam em uma lancha cobriram seus rostos com o que pareciam ser máscaras de esqui. Quando a van parou, três homens surgiram, abriram as portas traseiras - e saíram 12 pessoas, várias delas crianças pequenas.

Os passageiros incluíam Aden e seu bebê, Awale, com quem ela originalmente havia fugido de Jilib, uma pequena cidade em uma área da Somália controlada pelo Al Shabab, um grupo militante ligado à Al Qaeda, disse ela. Aden disse que eles desembarcaram em Lesbos em um bote de contrabandistas um dia antes e passaram uma noite escondidos no mato antes de serem cercados por homens mascarados.

Sulekha Abdullahi, de 40 anos, e seus seis filhos também estavam amontoados na van.

Assim como Mahdi, de 25 anos, e Miliyen, de 33, que disseram que também chegaram a Lesbos de bote e procuraram abrigo no mato. Eles foram capturados após uma curta perseguição, e os tornozelos de Miliyen ainda apresentavam arranhões profundos quando o entrevistamos dias depois.

Eles concordaram em compartilhar suas histórias, mas pediram para serem identificados apenas pelo primeiro nome, com medo de represálias.

Alguns minutos depois que o grupo foi escoltado para fora da van, todos foram levados para as águas do mar Egeu na lancha. De longe, parecia um passeio turístico de lazer. Foi tudo menos isso.

Mais três minutos se passaram e então a lancha se aproximou do navio 617 da Guarda Costeira, que foi pago principalmente com fundos da União Europeia, de acordo com listas arquivadas de ativos da Guarda Costeira grega.

Um a um, os migrantes foram desembarcados da lancha e levados para a popa do barco da Guarda Costeira, escoltados por seis indivíduos sem máscara, alguns dos quais aparentavam estar usando o uniforme padrão azul-escuro.

A embarcação da Guarda Costeira então virou para o leste em direção à Turquia e partiu. O barco não estava enviando sua localização, de acordo com o Marine Traffic, uma plataforma de dados marítimos ao vivo que rastreia embarcações. Mas o NYT conseguiu aproximar sua posição usando dados de localização de outras embarcações comerciais próximas visíveis na filmagem.

O barco da Guarda Costeira parou quando se aproximou da borda das águas territoriais da Grécia. O vídeo que Mulla filmou da costa de Lesbos está embaçado por causa da distância, mas um objeto preto pode ser visto mais tarde flutuando ao lado do barco da Guarda Costeira.

Em entrevistas no centro de detenção de Izmir, todos os migrantes relataram ter sido empurrados para um bote salva-vidas inflável preto e deixados à deriva. O uso dessas jangadas sem motor foi documentado no passado, mas as autoridades gregas negaram deixar migrantes flutuando nelas, porque são inavegáveis ​​e podem virar.

As autoridades gregas costumam usar uma mensagem de fax para alertar seus colegas sobre a presença de migrantes retidos em águas territoriais turcas, segundo autoridades da Turquia, e cerca de uma hora depois que os migrantes foram abandonados, dois barcos da Guarda Costeira turca apareceram.

O NYT conseguiu aproximar o local do resgate por meio das coordenadas do MSC Valencia, um grande navio comercial ancorado nas proximidades, visível ao fundo.

O resgate de 11 de abril, como muitos outros, foi publicado em um site atualizado regularmente pelas autoridades turcas.

Sua Guarda Costeira disse ter resgatado “12 migrantes irregulares no bote salva-vidas que foi empurrado de volta para as águas territoriais turcas por autoridades gregas”, na costa de Dikili, em frente a Lesbos, às 14h30, horário local.

O NYT analisou o vídeo fornecido pela Guarda Costeira turca e conseguiu identificar os indivíduos visíveis na filmagem de Mulla em uma das fotos, que mostra os migrantes chegando ao porto de Dikili, na Turquia.


Fonte: O GLOBO