O ex-subsecretário do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado Thomas Shannon também afirma que Lula deve ter cuidado com o que diz sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia

Em sua visita à Pequim e Xangai, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está “repetindo a narrativa da China”, e isso não trará benefícios ao Brasil. Essa é a avaliação do embaixador americano Thomas Shannon, que chefiou a embaixada dos Estados Unidos em Brasília durante os anteriores governos do PT e é ex-subsecretário do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado.

Em entrevista ao GLOBO, Shannon comentou a visita de Lula à empresa Huawei, considerada um risco para a segurança nacional americana, e as declarações do presidente brasileiro sobre a dependência global do dólar americano. “São escolhas do Brasil, e serão problemas para o Brasil. Boa sorte com isso”, afirma Shannon, que defende a necessidade de os governos de Lula e Joe Biden basearem sua relação na defesa da democracia em ambos os países.

A visita de Lula à China tem uma dimensão superior à viagem a Washington, em fevereiro…

Acho que é um erro comparar as duas visitas, porque elas são motivadas por razões diferentes. Mas Lula veio primeiro aos EUA, e isso, em si mesmo, é um recado. Lula é conhecido nos EUA, e é conhecido pelo presidente Biden. A visita não foi, como na China de Xi Jinping, uma introdução. Na China, o Brasil está buscando reativar suas relações econômicas bilaterais. Com os EUA, temos mais de 100 anos de história comercial, de investimentos mútuos, integração de cadeias produtivas, não se pode dizer isso sobre a China. O Brasil está buscando uma relação mais profunda com a China, não vejo uma questão nisso.

Lula visitou a fábrica da Huawei, uma empresa considerada uma ameaça à segurança nacional dos EUA…

Os EUA deixaram claro que a Huawei representa um desafio para os países que querem construir suas redes e sua infraestrutura digital. A Huawei pode usar essas estruturas para ter acesso a informações, que podem ser repassadas para o governo da China. É uma decisão que cada governo deve fazer. Nós deixamos claras nossas preocupações sobre segurança, confidencialidade.

É um risco que o Brasil corre, então?

É a escolha do Brasil, e será um problema do Brasil. Boa sorte com isso.

O senhor conhece bem o Brasil, está surpreso pelas posições e falas de Lula?

Não muito, mas eventualmente o presidente Lula e sua equipe vão retornar ao Brasil e a realidade vai se impor. Terão de avaliar o que conseguiram. O Brasil, como [o presidente da França, Emmanuel] Macron, está apoiando a China em algumas questões, e, me pergunto, o que isso vai dar ao Brasil? Não acho que muita coisa.

O senhor considera que o Brasil está cometendo erros?

Diria que sim, mas entendo que a China é um parceiro importante para o Brasil na economia global. Entendo que o Brasil quer ter uma relação positiva com a China. Mas, dito isto, o Brasil deve se apresentar como um país que define seus interesses, que articula esses interesses, e não parecer subserviente com ninguém. Hoje vejo o Brasil repetindo a narrativa da China, sem necessariamente obter algo importante para os interesses do Brasil.

As críticas de Lula ao dólar americano podem causar mal-estar em Washington?

Muitas pessoas no mundo gostariam de não depender do dólar, mas o dólar não é uma moeda global porque os EUA o impuseram, é uma moeda global pelo poder da economia americana, e pelo papel da economia americana no sistema financeiro e na ordem econômica global. Se o Brasil, a China ou os Brics querem substituir o dólar, OK, vão em frente. Que moeda vão usar? A moeda chinesa, a brasileira? Ok, boa sorte com isso.

O governo Biden deve ficar incomodado?

Não sei, realmente. Mas acho que, primeiro, os presidentes Lula e Biden têm um bom relacionamento, e isso tem enorme valor. Os EUA reconhecem que o Brasil é um parceiro importante, especialmente nos atuais momentos, com a guerra entre Rússia e Ucrânia. Questões como energia, alimentos, e muitas outras, são importantes. O governo Biden vai focar nisso, e não na retórica, especialmente na retórica de uma visita de Estado. Os EUA e o Brasil têm uma relação profunda, forte, que é maior do que seus governos. Isso não me preocupa.

O que o preocupa, então?

Os dois governos precisam ter uma conversa mais ampla, não sobre Huawei, ou sobre moedas globais, precisam falar sobre como fazer a democracia funcionar. Sobre como podemos cooperar e colaborar para fazer com que as democracias em nossos dois países funcionem. Se nossas conversas estiverem apenas baseadas na geopolítica, não chegaremos muito longe. 

Temos, ambos, problemas de governabilidade, sociedades polarizadas, divididas, e nossas democracias, as maiores da região, precisam trabalhar juntas para entregar bons resultados. Lula está no governo há 100 dias. Sua popularidade está em 36%, e Biden está em torno dos 40%. O Brasil não fortalecerá sua democracia na relação com a China, e sim o fará na sua relação com os EUA.

Sobre a guerra, como avalia as declarações de Lula sobre a Crimeia?

Bom, poderia dizer que [o presidente da Ucrânia, [Volodymyr] Zelensky poderia sugerir que Lula desse o Rio Grande do Sul para a Argentina. Mas, falando sério sobre um assunto muito grave e que preocupa a todos, se o Brasil espera ter um papel no processo que ajude a terminar com esta guerra, deve ter cuidado com o que diz, deve se apresentar como neutro.


Fonte: O GLOBO