Uso de manobras para passar a proposta na "canetada" mexe com os sentimentos mais profundos da sociedade francesa

Porto Velho, RO - Ainda restam quatro anos de mandato para Emmanuel Macron e após o turbilhão da Reforma da Previdência, especialistas se perguntam se a perda de popularidade do presidente francês é reversível.

Nesta sexta-feira (14), o Conselho Constitucional, órgão responsável por avaliar se reformas estão de acordo com a Constituição francesa, aprovou a maior parte do projeto de Emmanuel Macron, incluindo seu ponto central: a elevação da idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos. Apenas seis dispositivos secundários foram rejeitados.

Os nove membros do Conselho também rejeitaram a proposta de partidos da oposição de realizar um referendo para saber se os franceses são a favor ou não de fixar a idade mínima em 62 anos. Um novo pedido de referendo já foi protocolado e deve ser analisado até o dia 3 de maio.

Com o sinal verde do Conselho, Macron deve promulgar a sua tão esperada reforma nos próximos dias. E assim, pode seguir carregando a sua bandeira reformista.

Mas se a proposta passou no teste Constitucional, no teste popular a situação é diferente. Já são três meses de mobilizações e 12 rodadas de greves gerais. No auge dos protestos, os sindicatos chegaram a contabilizar 3,5 milhões de manifestantes, o governo 1,3 milhão.

Em cenas inimagináveis em uma das capitais mais luxuosas do mundo, lixos se acumularam nas ruas com a greve dos coletores. Cerca de 15% dos postos ficaram sem combustíveis devido aos bloqueios em refinarias. Aeroportos tiveram voos cancelados por semanas a fio. Manifestantes fecharam pontos turísticos que estão entre os mais visitados do mundo, como o Museu do Louvre e a Torre Eiffel.

Do primeiro protesto, em 19 de janeiro, para o último, no dia 13 de abril, a violência escalou. Principalmente depois que o governo lançou mão do artigo 49.3 para fazer a reforma passar sem o aval da Assembleia Nacional, o equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil.

Mácron argumenta que, sem a reforma, o sistema previdenciário irá quebrar com o envelhecimento da população. A França tem uma das menores idades mínimas de aposentadoria da União Europeia. Países avançados têm idade mínima na casa dos 65 anos, com projetos avançando para levar para 67. Os gastos com previdência, equivalentes a 14% do PIB, são um dos maiores dos países da OCDE, o clube dos países ricos.

Crise social

Alguns chamam toda essa situação de crise social, os mais críticos de crise democrática. Macron dá de ombros e, durante viagem à China, sua equipe disse que se os franceses quisessem se aposentar aos 60 anos não deveriam ter o elegido – ignorando o fato de que ele foi eleito não pelas suas reformas, mas porque parte da população queria evitar a ascensão da extrema-direita.

Macron amarga o pior nível de popularidade desde os protestos dos coletes amarelos em 2018: apenas 25% dos franceses o aprovam, segundo o Instituto Elabe. O mesmo instituto também revelou que se as eleições de 2022 acontecessem agora, Macron seria derrotado pela líder da extrema-direita Marine Le Pen por 55% contra 45% dos votos.

Além de cerca de 70% da população rejeitar a reforma, muitos passaram a questionar se o seu processo de aprovação foi democrático, já que dispensou o aval dos deputados.

Thomás Zicman de Barros, pesquisador da Universidade Sciences Po Paris, avalia que a forma como o governo conduziu o processo de aprovação da reforma levou à escalada do descontentamento social, e abre precedentes relevantes, que podem alterar a forma de fazer política no país.

“A forma como o projeto tramitou, usando principalmente artigo 47.1 para acelerar o debate e o 49.3 que depois cancelou o debate, não é um procedimento normal. E isso abre precedentes para que o Parlamento perca sua força e o poder de obstrução da oposição se reduza”, analisa Barros.

O pesquisador da Sciences Po acrescenta que a reforma trouxe a Macron a segurança de poder recorrer a esses artigos para continuar governando à revelia do Parlamento, já que o mandatário perdeu o apoio da maioria no Congresso nas eleições de 2022. E são precisamente essas práticas que causaram a maior indignação da população francesa e que incendiaram os protestos, prossegue Barros.

“A grande questão que se coloca agora é: será que Macron vai continuar usando isso para governar de maneira vertical ou, por conta da indignação da população, vai ceder e começar o diálogo com outros atores políticos e movimentos sociais?”

Usar subterfúgios legislativos para ignorar a vontade da maioria é uma discussão nevrálgica para uma sociedade que há poucos séculos cortou a cabeça do seu próprio rei, na histórica Revolução Francesa. Mexe com os brios e os traumas dos franceses, que prezam pelos direitos sociais e têm os protestos como seu principal hobby, como eles mesmos brincam.

Na prática, o saldo da reforma da previdência foi positivo para o governo Macron. Mesmo na tratorada, a reforma deve entrar em vigor em setembro. Mas em termos políticos, por ora, o saldo é negativo.

Resta saber se depois do embate com a maior parte da sociedade francesa, o presidente vai recuar e recuperar sua popularidade. Ou se seguirá com seu projeto reformista, mesmo às custas de aprofundar ainda mais sua rejeição – e até de jogar o país no colo da extrema-direita.

Fonte: CNN Brasil