Taxa de homicídios caiu vertiginosamente e população relata melhora na vida cotidiana, mas prisões irregulares e denúncias de tortura se multiplicam pelo país

Quando a gangue MS-13 controlava o bairro de Las Margaritas, um de seus redutos em El Salvador, havia regras que você tinha que seguir para se manter vivo.

Você não podia usar o número oito porque estava associado à gangue rival da 18th Street. Você não podia usar a marca de tênis que os gangsteres usavam. E você não podia, em hipótese alguma, chamar a polícia.

— As pessoas não podiam prestar queixa à polícia por causa do que os meninos diriam —, explicou Sandra Elizabeth Inglés, moradora de longa data, referindo-se aos integrantes da gangue. — Eles se tornaram a autoridade neste sistema.

El Salvador, o menor país da América Central, já foi conhecido como a capital do homicídio no hemisfério – com uma das taxas de homicídio mais altas do mundo fora de uma zona de guerra.

Mas no período de um ano desde que o governo declarou estado de emergência para reprimir a violência das gangues, mobilizando os militares para as ruas, a nação passou por uma transformação notável.

Agora, as crianças jogam futebol até tarde da noite em campos que eram gramados de gangues. Inglés recolhe terra para suas plantas ao lado de um prédio abandonado que os moradores dizem ter sido usado para assassinatos de gangues.

Os homicídios caíram. Pagamentos de extorsão impostos por gangues a empresas e residentes, antes uma economia em si, também diminuíram, disseram analistas.

— Você pode andar livremente. Muita coisa mudou —, disse Inglés.

El Faro, principal veículo de notícias de El Salvador, fez um levantamento nacional no início deste ano e fez uma avaliação impressionante: as gangues, em grande parte, não existem mais.

Mas essa conquista, dizem os críticos, teve um preço incalculável: prisões em massa que encarceraram milhares de pessoas inocentes, a erosão das liberdades civis e o aprofundamento do país em um estado policial cada vez mais autocrático.

A maioria dos salvadorenhos parece disposta a aceitar esse acordo. Fartos das gangues que os aterrorizaram e forçaram tantos a fugirem para os Estados Unidos, a grande maioria das pessoas apoia as medidas e o presidente por trás delas, sugerem pesquisas.

Com índices de aprovação em torno de 90%, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, de 41 anos, tornou-se um dos líderes mais populares do mundo e conquistou fãs em todo o hemisfério ocidental.

Os hondurenhos entoaram o nome de Bukele e o aplaudiram na posse do presidente no ano passado. Uma pesquisa mostrou que as pessoas no Equador, onde a violência está aumentando, têm mais consideração por Bukele do que por seus próprios líderes.

Enquanto políticos do México à Guatemala prometem imitar a abordagem de punho de ferro de Bukele, os críticos ficam preocupados com a possibilidade de o país se tornar um modelo para uma barganha perigosa: sacrificar as liberdades civis pela segurança.

— Continuo incrivelmente pessimista sobre o que isso significa para o futuro da democracia na região —, disse Christine Wade, especialista em El Salvador do Washington College em Maryland. — O risco é que isso se torne um modelo popular para outros políticos dizerem: 'bem, poderíamos estar fornecendo mais segurança a você em troca de você abrir mão de alguns de seus direitos'.

O governo salvadorenho prendeu mais de 65 mil pessoas no ano passado, incluindo crianças de até 12 anos, mais do que dobrando a população carcerária total. Pelas próprias contas do governo, mais de 5 mil pessoas sem conexão com gangues foram colocadas atrás das grades e posteriormente libertadas. Pelo menos 90 pessoas morreram sob custódia, disse o governo.

Grupos de direitos humanos documentaram prisões arbitrárias em massa, bem como superlotação extrema nas prisões e relatos de tortura por guardas.

O vice-presidente de El Salvador, Felix Ulloa, disse em entrevista que as denúncias de abuso por parte das autoridades estão sendo investigadas e que os inocentes presos estão sendo libertados.

— Há uma margem de erro —, disse ele, defendendo o que chamou de estratégia “quase cirurgicamente impecável”. — As pessoas podem sair, comprar coisas, ir ao cinema, à praia, ver jogos de futebol. Devolvemos a liberdade às pessoas.

No que antes eram algumas das partes mais perigosas do país, casas abandonadas que pertenciam a membros de gangues estão sendo reformadas e reocupadas por novos inquilinos.

Nas ruas de Las Margaritas, um bairro do outrora terrivelmente violento município de Soyapango, no centro do país, os carros agora estacionam sem que os donos paguem US$ 10 (R$ 50) por mês aos extorsionários da quadrilha.

Antes da repressão, ninguém visitava o principal mercado ao ar livre do município, sem a permissão de capangas de gangues, disseram os vendedores. Agora o local está lotado por quem quer estar lá.

Quando Inglés costumava contar às pessoas onde ela morava — em uma rua sem saída em Las Margaritas — elas ficavam boquiabertas.

— Eles diziam: 'ah, não, você mora no Vietnã!' —, lembra Inglés, colocando suco de manga em uma sacola para um menino no estande que ela administra do lado de fora de sua casa.

Ela costumava olhar para o grafite do outro lado da rua que dizia “veja, ouça e cale a boca”, disse Inglés, uma frase usada pela gangue para intimidar os moradores a manterem silêncio sobre seus crimes.

Inglés diz que aprendeu a manter a cabeça baixa: — Quanto menos coisas você via, menos problemas você tinha. Uma imagem de um pássaro foi recentemente pintada sobre o grafite.

Juan Hernández, de 41 anos, não pisava em um campo de futebol de sua casa há 10 anos.

— Era turfa —, disse ele, referindo-se a território de gangues. — Você seria atingido pelas balas a torto e a direito.

Agora ele usa o campo para ensinar o filho de 12 anos a jogar: — Ele me diz que quero aprender, eu digo a ele, vamos lá —, disse Hernández.

O catalisador para a nova realidade emergente em El Salvador foi um ataque de criminosos em março do ano passado, que deixou mais de 80 mortos.

Autoridades dos EUA disseram que muito antes da repressão, o governo de Bukele negociou um acordo com líderes de gangues para reduzir os homicídios em troca de benefícios, incluindo melhores condições nas prisões.

Muitos analistas acreditam que o aumento da violência foi um sinal de ruptura no suposto pacto; Bukele negou ter feito tal acordo.

Após os assassinatos de março, o Legislativo controlada pelo partido governante de El Salvador declarou estado de emergência. Os militares ocuparam áreas controladas por gangues em todo o país, prendendo 13 mil pessoas em poucas semanas.

Um deles era o filho de Morena Guadalupe de Sandoval, com quem ela diz não ter visto ou falado desde que ele foi preso quando voltava do trabalho na capital, há cerca de um ano. Ela diz que as autoridades o acusaram de fazer parte de um grupo criminoso, algo que ela nega.

A cada três meses, ela visita a prisão de Izalco, onde diz que seu filho Jonathan González López está detido, uma instalação no oeste do país onde casos de tortura foram denunciados. Ela implora por informações sobre ele. Às vezes ela leva a esposa dele e o filho de 2 anos.

O máximo que ela ouve é que ele ainda está preso.

— A depressão bate —, disse Morena. — Fico em péssimo estado quando penso em como não posso vê-lo e não posso falar com ele.

Em um relatório divulgado em dezembro, a Human Rights Watch e uma organização salvadorenha chamada Cristosal entrevistaram pessoas detidas durante a repressão que foram posteriormente libertadas e que descreveram os horrores que testemunharam dentro do sistema prisional do país: espancamentos, mortes e fome.

Um disse que os guardas mantiveram sua cabeça debaixo d'água para que ele não pudesse respirar, segundo o relatório. Outro disse que recebia duas tortillas para comer por dia, que tinha que dividir com outro detento.

Morena diz que a repressão melhorou as coisas em seu bairro, uma área chamada Distrito Italiano, que já foi dominado pela MS-13. Ela não vê mais jovens fumando maconha nas esquinas, disse ela.

— É mais seguro. Dessa forma, é uma coisa boa —, disse.

Mas ela não consegue separar o lado positivo de sua dor diária. Seu filho fará 22 anos dentro da prisão neste mês. Ela sonha em ter um único vislumbre dele.

— Eu só quero vê-lo, mesmo que seja de longe —, disse Morena.


Fonte: O GLOBO