Especialistas de diferentes países avaliam os posicionamentos do presidente brasileiro, que nos últimos dias equiparou a Ucrânia à Rússia e afirmou que EUA e países da Europa contribuem para a ampliação do conflito

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhou os holofotes internacionais por seus recentes posicionamentos sobre a guerra na Ucrânia. Desde a viagem a Pequim, na semana passada, o brasileiro pediu para que EUA e Europa parem de fornecer armas e munições à Ucrânia, afirmou que Kiev é tão responsável quanto Moscou pelo conflito, recebeu o chanceler russo e não criticou diretamente Vladimir Putin. As reações dos países — aliados, envolvidos na guerra ou independentes — foram imediatas.

Mas afinal: como Lula e a diplomacia brasileira saem destes episódios? O GLOBO entrevistou especialistas de nações diferentes para medir a percepção global sobre os posicionamentos mais arriscados em política externa do presidente desde que chegou ao Planalto pela terceira vez. E ninguém ficou indiferente.

Em comum, analistas da Europa e dos EUA criticam mais fortemente Lula, indicando que o presidente pode ter queimado parte de seu capital político internacional e criado dificuldades para o Brasil, com ações vistas como ingênuas e mais partidárias da Rússia do que se esperava de um líder global que tenta mediar a paz em um conflito com repercussões planetárias.

Latino-americanos se dividem entre o estranhamento à estratégia de Lula nos episódios ou mesmo à falha de comunicação (e medida) em uma tentativa de tentar se colocar no tabuleiro global como uma pessoa apta a dialogar com ambas as partes. E, da Índia — país que também tenta se equilibrar entre os dois lados, mas que, ao contrário do Brasil, até agora nunca condenou a invasão russa em organismos como a ONU — há um reconhecimento da tentativa do presidente de buscar independência em relação aos posicionamentos dos grandes blocos ocidentais.

Fontes diplomáticas brasileiras admitiram que a retórica de Lula sobre a guerra complicou o interesse do Brasil de querer colocar-se como um eventual mediador no conflito. Ao mesmo tempo, avaliam que pontes com os Estados Unidos de Joe Biden, União Europeia (UE) e a Ucrânia não foram queimadas, o que coincide com os analistas — e está presente até no tom dos comunicados da Casa Branca, União Europeia ou G7, em que há um estranhamento ou advertência, mas não um rompimento. A seguir, um resumo das principais análises:

Chris Garman (Diretor do Eurasia Group/ EUA)

As falas de Lula caíram muito mal em Washington e na Europa, e queimaram parte da boa vontade em relação ao novo governo do Brasil, disse. Para ele, todos aceitam a posição de independência, sua viagem à China, assinatura de 15 acordos, até não fornecer armas à Ucrânia. A maioria dos países emergentes não quer escolher um lado, e isso não é controverso.

O problema surge quando Lula afirma que os EUA e a Ucrânia também são responsáveis pelo conflito. Tratar ambos da mesma maneira com que se trata a Rússia, o país invasor, caiu realmente muito mal, parece um alinhamento com os russos. O capital político brasileiro foi parcialmente queimado.

Ele diz não crer que o Brasil esteja se alinhando com China e Rússia, mas Washington vê com profunda preocupação. Faço a ressalva de que Lula foi primeiro se encontrar com Biden, defende o acordo entre Mercosul e UE e há uma agenda ambiental robusta com os EUA e a UE. Isso pode conter a repercussão, não vejo americanos e europeus virando as costas para o Brasil.

O dano é a perda da oportunidade para o Brasil em uma eventual mediação pela paz. Lula minou a credibilidade de isenção. Relações estruturais não serão afetadas, mas este Lula mais confiante e ambicioso, talvez com menos filtro, gera preocupação.

Varun Sahni (Universidade Jawaharlal Nehru/ Índia)

O Ocidente precisa entender que para países como Brasil e Índia, a guerra entre Rússia e Ucrânia não é apenas um conflito bélico: está em jogo, também, o papel de cada um de nós no sistema internacional e, sobretudo, no sistema internacional que vai emergir.

Quando Lula diz que os dois lados desta guerra têm responsabilidade, é o que qualquer pessoa que tenha a intenção de mediar no conflito deveria dizer, pois é preciso considerar as sensibilidades dos dois lados. É preciso entender, por exemplo, que a Rússia provavelmente vai reter a Crimeia [anexada em 2014]. Se Lula quer participar de uma mediação, está correto em afirmar que a culpa deste conflito não é exclusivamente de Putin.

A Ucrânia precisa ser responsável por sua relação com a Otan. Os europeus têm suas razões, mas continuam fazendo acordos energéticos com a Rússia. Agora, o que a Rússia fez não foi inteligente. Ela vai ficar mais enfraquecida, depender mais da China. Começar esta guerra não foi sensato.

Brasil e Índia nunca justificaram a guerra, e sempre defenderam o princípio da não agressão. Nossos países cresceram, e têm posições independentes. Não podemos simplesmente adotar as definições que saem de Washington ou de Bruxelas.

Nils Schmid (Deputado Social Democrata/ Alemanha)

Consideramos que Lula subestima a responsabilidade da Rússia na guerra contra a Ucrânia. Se você quer ajudar a parar com esta guerra, você precisa entender que foi a Rússia quem começou. Apenas uma pessoa pode parar esta guerra, e essa pessoa é Putin. Precisamos ajudar a Ucrânia a se defender, como está previsto na Carta das Nações Unidas: se um país é atacado, ele tem o direito de se defender.

Não é possível, no momento, interromper o envio de armas para a Ucrânia. Se o Brasil fosse invadido pela Argentina, imagino que não estaria feliz. Apreciamos a tentativa do presidente Lula de falar em paz, mas ele parte de presunções falsas.

Também gostaria de ver a China envolvida no debate por uma solução, mas a China está muito próxima da Rússia. Putin ainda acredita numa vitória militar e não vai participar de negociações sérias. O que Lula disse não ajuda o Brasil a ter um papel num futuro grupo de paz, sobretudo porque perde credibilidade perante o governo ucraniano. Lula não reconhece os interesses da Ucrânia. No futuro, quando existirem reais possibilidades de diálogo, muitos países serão considerados, como China, Turquia e, quem sabe, o Brasil, se Lula adotar um tom mais equilibrado.

Paulina Astroza (Universidade de Concepción/ Chile)

Fiquei surpresa pelas declarações de Lula sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia, principalmente ao colocar no mesmo nível o país agressor e o país agredido. Putin tem uma ordem de prisão do Tribunal Penal Internacional, uma sentença da Corte Internacional de Justiça, que condenou a invasão russa e exigiu o fim da guerra. Me parecem insólitas as declarações de Lula, do ponto de vista jurídico e estratégico.

Lula está rompendo a suposta neutralidade do Brasil, o que afeta a América Latina, região onde nenhum país adotou sanções contra a Rússia. O presidente brasileiro está indo na contramão de muitos países latino-americanos, como o Chile. Aqui se faz uma distinção entre quem tem o poder e quem deve terminar a agressão.

Ao culpar a Europa por enviar armas para a Ucrânia, Lula esquece que sem esse apoio, o país estaria submetido ao controle russo. Lula está se colocando ao lado da Rússia, com o apoio da China, e adotando um discurso antiocidental. Tudo isso convém ao Brasil?.

Esperávamos um Lula mais articulador, que fosse uma ponte entre a América Latina e o mundo. Sua estratégia de médio e longo prazo não se compreende.

Fabrizio Tassinari (Diretor-executivo da Escola de Governança Transnacional da Universidade Europeia/ Itália)

Quando Lula assumiu seu terceiro governo, existia esperança na Europa em matéria da política externa brasileira, e muitos acreditam que haveria uma grande mudança. Hoje, a maioria dos europeus considera as posições de Lula sobre a guerra na Ucrânia uma enorme decepção. Na Europa, Lula é uma estrela, e isso faz uma enorme diferença, e por isso nossa frustração.

Lula pedir que tenhamos paciência com Putin e dizer que a guerra começou por decisão dos dois países envolvidos não é honesto. Se Zelensky parar de combater, estará acabado, e seu povo derrotado, enquanto Putin pode parar a guerra imediatamente. Para ele, se o presidente Lula pretende manter uma neutralidade, deve entender e dizer que existe uma diferença entre Rússia e Ucrânia, é isso o que os europeus esperam.

Todos os europeus esperam a chegada da paz, mas é fácil falar sobre paz sem discutir as condições, e as precondições. A Rússia, primeiro, deve se retirar do território ucraniano, as violações dos direitos humanos não podem ser ignoradas. Lula deveria deixar de falar sobre este assunto, porque está perdendo credibilidade e “o Brasil pode ficar fora do jogo.

Barnabe Malacalza (Pesquisador da Universidade Torcuato di Tella/ Argentina)

A situação do Brasil hoje é muito diferente da que era quando Lula governou o país, entre 2003 e 2010, e o presidente está diante de desafios que antes não enfrentou: internamente, precisa despolarizar a sociedade e sua própria coalizão de governo. Externamente, o Brasil precisa de ar, após anos sufocado pelo governo Bolsonaro. Lula precisou recompor relações com os EUA, UE e China.

Atualmente, vivemos num mundo mais turbulento. Fora do campo de batalha, existe uma guerra econômica, outra guerra moral nas redes sociais, e nesse contexto tão complexo é preciso ser prudentes.

É preciso condenar a Rússia com contundência, porque sua responsabilidade no conflito é diferente da que tem a Ucrânia. Toda a situação é muito delicada. O que Lula vem dizendo sobre colocar Zelensky e Putin num mesmo nível de responsabilidade, sua retórica, embora o presidente tenha boas intenções, é delicado.

O presidente está em um jogo de percepções, e como comunicar é mais importante que a própria intenção de quem comunica. Lula está dando margem aos russos para se aproveitarem de suas declarações. Acho que o presidente não está sendo prudente. Agora, Lula agora deveria fazer um controle de danos.

Carlos Romero (Universidade Central da Venezuela)

As condições internacionais de hoje são muito diferentes das que enfrentou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seus dois primeiros governos. Naquele momento, havia mais equilíbrio entre as potências, e havia mais espaço para países como o Brasil. Existia uma abertura para fazer política externa sem interferir nos interesses das grandes potências, como acontece atualmente.

Temos uma intensa concorrência entre China e EUA, a guerra entre Rússia e Ucrânia, e os mecanismos multilaterais que não estão funcionando como deveriam, por diferentes motivos. Por sequelas deixadas pela pandemia da covid-19, e pelo próprio conflito bélico, entre outros motivos.

Lula quer que o Brasil, junto com sócios dos Brics, seja um promotor da paz mundial. Esse tema se tornou importante no debate global. Mas em sua própria região, o presidente brasileiro não quer se comprometer condenando regimes autoritários como os da Venezuela e da Nicarágua, prefere não se meter nesses assuntos. No cenário internacional, global, Lula fala porque os custos são menores. Já no cenário regional, o presidente brasileiro fica em silêncio, porque o custo de falar seria mais alto.

Acho que o que Lula diz sobre Rússia e Ucrânia não o compromete, até agora considero sua posição neutra e cautelosa. Veremos com o tempo se o presidente brasileiro adota posições mais ousadas.

Gian Luca Gardini (Universidade de Udine/ Itália)

Sou muito crítico das opiniões do Brasil e do presidente Lula, mas entendo perfeitamente de onde sai sua postura atual. Nos últimos anos o Brasil perdeu posições no mundo, e se aproximar outra vez do Sul global é a maneira mais fácil de ganhar visibilidade no exterior. O que Lula está fazendo é uma escolha oportunista, sem valores, e sem um olhar de longo prazo.

Posso entender os interesses brasileiros, mas me preocupam as consequências. A posição de Lula sobre a Ucrânia é ideológica, porque não está sustentada no direito internacional. Esta guerra começou com uma violação clara deste direito, e a Rússia é o país agressor. O Brasil votou nas Nações Unidas contra esta agressão russa, mas o presidente Lula diz considerar que os Estados Unidos e a Europa são responsáveis pela guerra, por fornecer armas à Ucrânia, o que é absurdo. Um país que é vítima como a Ucrânia, tem esse direito. Sem essas armas, a Ucrânia já teria perdido o conflito.

Vejo por parte do Brasil uma suposta neutralidade desequilibrada, porque com suas declarações o presidente brasileiro favorece a Rússia e a China, claro, entendo, seu maior sócio comercial. Podemos entender isso, mas então não nos venham com a conversa de neutralidade. O chanceler russo, Sergei Lavrov, saiu de Brasília com o que queria, claramente satisfeito.

No longo prazo, o Brasil deverá decidir de que lado está. Vai apoiar as democracias, os direitos humanos, o uso da força? Ou vai aceitar regimes não democráticos, violações dos direitos humanos e agressões que violam o direito internacional? Os países que dizem que querem contribuir para a paz entre Rússia e Ucrânia, entre eles Brasil, Índia e China, são os que estão sendo mais beneficiados pela guerra, por exemplo, comprando petróleo russo mais barato.

Temo que o Brasil termine alinhado com sócios que serão problemáticos. Estive na primeira posse de Lula, em Brasília, e hoje me dói ver a evolução do presidente brasileiro.


Fonte: O GLOBO