Tons das casas da cidade localizada a cerca de 500 km de Londres respeitam uma paleta de cores determinada por ele próprio, assim como o padrão arquitetônico

Mistura do filme americano “O show de Truman” (1998), distopia e ficção científica, Nansledan não tem nada fora do lugar. Isso porque a cidade, extensão do balneário de Newquay — paraíso de surfistas na Cornualha, no sudoeste de uma península do Reino Unido — foi concebida pelo rei da Inglaterra enquanto ainda era o príncipe herdeiro da coroa. 

E ali Charles III, que será coroado em maio, criou uma série de normas e regras para que a cidade seguisse suas orientações.

Os tons das casas da cidade, localizada a cerca de 500 quilômetros de Londres, respeitam uma paleta de cores determinada por ele próprio, assim como o padrão arquitetônico, que segue o que considera um estilo clássico britânico. 

Nas fachadas foram deixados furos propositais para animar passarinhos a construírem seus ninhos e acomodar abelhas — bicho que anda sumido das cidades britânicas. Um guia de 38 páginas entregue aos felizes proprietários de imóveis no local reúne as regras de boa convivência.

Nome em córnico

Nem o nome passou despercebido pelo crivo do rei: Nansledan tinha que ter se batizada em córnico. Significa “grande vale”. O idioma é da família do gaélico — uma língua da família celta — e, por exigência de Charles: a obrigação de as ruas terem nomes nessa língua que entrou em extinção no século XVIII e foi ressuscitada no século XX. Pouco mais de 500 pessoas são fluentes em córnico, que tem sido ensinado em algumas escolas. Cerca de mil são capazes de manter um diálogo básico.

Polêmicas arquitetônicas à parte (especialistas dizem que não se pode forçar um estilo fora de época), o projeto é todo sustentável e já foi considerado modelo a ser replicado. Aos olhos de forasteiros, contudo, falta vida. A padronização excessiva cria a sensação de um local artificial.

Além disso, o sentimento é turbinado pelo fato de a cidade ainda não estar totalmente pronta. A previsão é de que terá 4.000 casas até 2025. Agora, elas não passam de 600. O vilarejo ainda não tem médico, nem supermercado, o que incomoda quem se mudou cedo para lá. 

A promessa é para muito breve, assim como a High Street, a principal avenida comercial, que está em vias de ficar pronta. Árvores frutíferas foram plantadas por toda parte para colorir a paisagem, ajudar na polinização e oferecer produtos orgânicos aos moradores. Algumas ainda têm a etiqueta com o nome da muda.

Mas, em seu incipiente comércio, já há uma loja de chapéus e roupas, tocada por Marcel Rodrigues. Britânico e filho de mãe portuguesa, ele foi dos primeiros a serem aprovados para abrir negócios em Nansledan. Quem aluga os espaços comerciais precisa se candidatar a ser inquilino, preenche formulário e passa por entrevista para que se saiba se é gente adequada.

Ducado do príncipe

Marcel parece perfeito. Apaixonado por sustentabilidade, vende as peças que desenha e confecciona ali mesmo, além de artigos de decoração de artesãos locais. Nada de importar pegadas de carbono. Para a coleção de inverno fez parcas com tecido de tendas militares da década de 1970, forrados com velhos saco de dormir.

Marcel esteve com Charles III um par de vezes. Ele costumava acompanhar de perto o seu sonho em construção pelo menos duas vezes por ano:

— É uma simpatia. Conversa com todos. Adora isso aqui. Vinha com um ou dois seguranças, andava por toda parte. Agora que é rei fica difícil.

Mas por que Charles III pode ter tanta influência em uma cidade? Nansledan faz parte do ducado da Cornualha, responsável pelo empreendimento que se estende por 518 quilômetros quadrados de terras que pertenciam ao então príncipe. O projeto é o mais audacioso do ducado, uma espécie de empresa do príncipe herdeiro (que agora cabe a William, filho mais velho do rei e sucessor na linha real). 

Foi criado em 1337 por Eduardo III para que o seu primogênito, o príncipe Eduardo, primeiro duque da Cornualha e primeiro príncipe de Gales, antigos títulos de Charles. Mas nunca foi rei. A “empresa” era fonte de renda para os herdeiros enquanto não fossem coroados. Tem terras, imóveis e negócios. Tudo deve ter contas prestadas ao Parlamento britânico. Nada é para obter lucros. A renda do ducado financiou atividades de caridade de Charles e os “escritórios” dele e dos filhos.

A artificialidade de uma perfeição que poucos centros urbanos conseguem ter tornou-se vantagem. Num país que tem como um dos principais motores o mercado imobiliário, projetos como estes casam com o desejo das autoridades de buscar setores que intensifiquem a atividade produtiva e gerem emprego.

Talvez por isso as permissões para construção, que costumam ser burocráticas e demoradas, tenham saído depressa. A ideia inicial era que as casas em Nansledan fossem mais baratas do que no resto do país, onde o mercado segue aquecido a despeito da crise. Mas nem mesmo o vilarejo do rei está imune à especulação, embora mantenha 30% de casas populares.

Ativista ambiental avant la lettre, Charles III teve tempo e dinheiro para dedicar-se à causa. Sua cidade é prova disso. Se para muitos pode parecer capricho ou excentricidade de príncipe, não se pode negar que o homem é um visionário. A filosofia por trás do seu empreendimento pessoal mais ousado confirma que o novo rei — sempre cheio de ideias para modernizar a monarquia —tem as suas paixões e não pretende escondê-las. E a sustentabilidade é inegociável na cabeça de Charles III.

Sem fast-food

Em Nansledan, todos os materiais vêm da Cornualha. As paredes são feitas com restos de porcelana reciclados da mina local, assim como tijolos, telhas e pedras. Quer trocar a cor da fachada? Só se estiver na paleta autorizada. 

Puxadinho? Só com permissão e se estiver dentro das exigências. Fast-food? Nem pensar. Recentemente, proibiu-se a permanência da van que vendia pizza num estacionamento próximo a uma das avenidas da cidade no fim da tarde de sexta-feira — os faróis dos carros dos consumidores incomodavam moradores.

Enquanto passeava com Herbert, seu buldogue francês, Amanda Jones parou no meio da rua para conversar com O GLOBO. Ela foi uma das primeiras moradoras. Chegou há quatro anos:

— Minha mãe mora em Newquay. Não há imóveis para se comprar lá. Os preços dispararam. Adoro surfe, mas é surfista para tudo quanto é lado. Muito movimento.

Amanda se encaixa no perfil dos moradores que vêm das redondezas. Há ainda hippies, outros visionários e amantes da região, sobretudo jovens. Tudo está sendo desenhado para que se circule a pé. Trilhas públicas foram criadas para aproximar as famílias e seus cachorros da natureza . No futuro, não haverá carros no centro. As casas têm garagem, mas ficam atrás dos imóveis. Charles não queria obstáculos à contemplação da arquitetura que pensou para a cidade.

Poundbury, a precursora

Antes de Nansledan, Charles III já havia criado, há 36 anos, Poundbury,nas imediações de Dorchester. E ela já foi alvo de muitas críticas, também pela artificialidade que inspira a partir de uma arquitetura extemporânea e engessada. Mas, ao contrário da nova empreitada, Pondbury já está mais estabelecida. Tem um bom comércio, mas ainda assim tem ares de cidade cenográfica.

Viver na cidade idealizada pelo rei não se traduz em ser monarquista. As pessoas foram atrás de dimensões mais humanas e construções confortáveis.


Fonte: O GLOBO