Encontro coincide com tentativa do presidente chinês de se consolidar como grande estadista e dependência cada vez maior que Putin tem de Pequim para driblar isolamento ocidental

O presidente da China, Xi Jinping, vai viajar à Rússia na semana que vem para reuniões com o presidente Vladimir Putin, em sua primeira ida ao país desde que a guerra na Ucrânia eclodiu, há quase 13 meses. 

A visita ocorre em um momento no qual Moscou se escora cada vez mais em Pequim para driblar o isolamento do Ocidente, coincidindo com uma busca chinesa por maior protagonismo diplomático e tentativas de mediar o conflito.

Tanto o Kremlin quanto o governo chinês emitiram comunicados confirmando a visita de Xi a Rússia entre segunda e quarta-feira da semana que vem. O comunicado da China afirma que a dupla terá "trocas profundas sobre relações bilaterais e questões regionais e internacionais importantes de preocupação mútua". Em suas declarações diárias à imprensa, o porta-voz da Chancelaria chinesa, Wang Wenbin, disse que "a viagem de Xi à Rússia será uma jornada de amizade".

Os russos afirmaram que os temas serão centrados na "parceria compreensiva e na cooperação estratégica entre os dois países". Confirmaram também que a visita ocorrerá por convite de Putin e que vários acordos bilaterais serão firmados, sem especificá-los.

A visita reforça a aproximação entre os dois presidentes, e Xi será o líder mais proeminente a visitar Moscou desde que a guerra começou, em 24 de fevereiro do ano passado. Será também a primeira passagem do presidente chinês pelo país desde 2019, antes da eclosão da pandemia, que fez Xi passar mais de dois anos e meio sem sair de seu país.

A guerra é uma questão difícil para os chineses, que têm buscado se posicionar de forma neutra, mas fornecem apoio diplomático a Moscou. Para Xi, o Kremlin é um aliado-chave contra o que considera um cerco ocidental a seus interesses estratégicos, em especial na Ásia, e no desejo de fazer frente à hegemonia americana com a defesa de uma ordem multipolar. Também prioriza evitar sanções e preservar os laços econômicos com o Ocidente, que questiona a neutralidade chinesa.

A expectativa é de que os dois presidentes discutam a proposta chinesa de 12 pontos pela paz, apresentado no primeiro aniversário da guerra. 

O documento, que pede um cessar-fogo, defende a integridade territorial — sem esclarecer como — e oferece benefícios à Rússia, foi saudado por Moscou e Kiev, mas rechaçado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar encabeçada pelos americanos.

— A China tem uma posição justa e objetiva na Ucrânia e terá um papel construtivo em promover conversas pela paz — disse Wang nesta sexta.

Falsa neutralidade?

Uma das críticas recorrentes do Ocidente e seus aliados ao que afirmam ser uma falsa neutralidade chinesa diz respeito ao aumento do comércio entre a Rússia e a China, que compensou parte das perdas impostas pela enxurrada de sanções ocidentais. As trocas atingiram um recorde de US$ 190 bilhões no ano passado.

A Rússia mais que dobrou suas exportações de gás natural liquefeito por ferrovia para a China, segundo uma análise da Reuters. As importações de gás natural por meio do gasoduto Poder da Sibéria aumentaram ao menos 50%, segundo a Gazprom, enquanto as importações chinesas de petróleo bruto russo cresceram quase 10% nos primeiros 11 meses de 2022.

Outro argumento ocidental é de que Xi não teve uma conversa com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, desde que a guerra começou, apesar de seu contato regular com Putin. Foram diversas conversas telefônicas e um encontro presencial às margens de uma cúpula da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX) em setembro no Uzbequistão.

Segundo o Wall Street Journal e o Financial Times, Xi pode ter uma reunião por vídeo com Zelensky nos próximos dias, mas a conversa não foi oficialmente confirmada. Sabe-se, contudo, que os chineses reforçaram seus contatos ministeriais com Kiev nas últimas semanas. Na quinta, por exemplo, o chanceler chinês, Qin Gang, conversou com seu par ucraniano, Dmytro Kuleba.

A tentativa de assumir a mediação da guerra na Ucrânia vem em um momento no qual Xi demonstra um novo nível de ambição diplomática em seu recém-iniciado terceiro mandato à frente da China, buscando impulsionar sua imagem de estadista global em meio às rivalidades sino-americanas. Seu papel na mediação da surpreendente retomada das relações diplomáticas entre Irã e Arábia Saudita na semana passada é sinal disso.

O crédito por ter conseguido uma reconciliação no Oriente Médio faz com que Xi assuma um espaço de influência antes restrito aos EUA, apresentando-se como uma alternativa a Washington e à ordem mundial em vigor desde o pós-Segunda Guerra Mundial. A ameaça que os chineses representam à hegemonia americana é um dos motivos-chave das tensões entre as duas maiores economias do mundo. Avanços na Ucrânia, portanto, seriam um triunfo imenso para Pequim.

'Parceria sem limites'

Com relações complicadas durante a Guerra Fria, China e Rússia se aproximaram nos últimos anos. Em fevereiro, pouco antes da invasão da Ucrânia, Xi e Putin se reuniram no dia da abertura da Olimpíada de Pequim, quando anunciaram uma "parceria sem limites". Com a eclosão do conflito, contudo, a Embaixada chinesa nos EUA esclareceu que há um "limite" para a parceria.

A China por via de regra se abstém em votações na ONU que buscam condenar Moscou pela guerra na Ucrânia, mas demonstrou preocupações que foram inclusive reconhecidas por Putin. Em novembro, por exemplo, Pequim assinou a declaração final da cúpula do G20 em Bali, que afirma que a maioria do grupo das 20 maiores economias do mundo condena “fortemente" o conflito.

Para analistas, a ida de Xi a Moscou dificilmente será bem vista por Kiev. Se a conversa com Zelensky se confirmar, contudo, a viagem poderá ser apresentada como uma tentativa de mediação:

— É cada vez mais difícil para a China convencer o mundo de que é de alguma forma uma figura neutra na Ucrânia — disse ao Financial Times Paul Naenle, do Carnegie Endowment para a Paz Internacional, que foi conselheiro dos ex-presidentes Barack Obama e George W. Bush para a China. — Então uma viagem de Xi Jinping a Moscou para ver Putin neste momento, sozinha, pode não ser bom para a China.


Fonte: O GLOBO