Grupo de mais de mil advogados turcos se mobiliza para tentar responsabilizar construtoras e empreiteiras após o terremoto que deixou quase 18 mil mortos no país

Um grupo de mais de mil advogados turcos se mobiliza para tentar buscar e responsabilizar construtoras e empreiteiras após o terremoto que deixou quase 18 mil mortos no país — de um total de mais de 21 mil, incluindo as vítimas na região do Norte da Síria, também atingida pela tragédia. 

O objetivo da iniciativa é investigar se houve desrespeito às normas de segurança impostas por lei desde 1999, quando um terremoto de 7,4 de magnitude deixou mais de 17 mil mortos na cidade de Izmit, no Noroeste turco.

A partir de então, o país atualizou os regulamentos de construções, de forma que novos projetos garantissem uma maior resistência estrutural diante de futuros abalos sísmicos. Mas, perante a magnitude da destruição, aumenta-se a suspeita de existência de várias construções irregulares, assim como negligência do governo, na região.

A mobilização envolve petições e coleta compartilhada de informações sobre as empresas, que serão disponibilizadas on-line para que, então, os participantes possam mover processos legais contra cada uma das companhias encontradas — mesmo aquelas que receberam apoio inicial do presidente Recep Tayyip Erdogan, cujo governo vem sendo alvo de críticas pela lentidão dos trabalhos de resgate e de ajuda às áreas afetadas.

Uma advogada envolvida na iniciativa afirmou ao GLOBO, no entanto, não haver grandes receios de que a iniciativa sofra forte repressão do governo. Há 20 anos no poder, Erdogan disputará novas eleições presidenciais em maio, e é de seu interesse terceirizar a responsabilidade pela tragédia nas mãos de empreiteiras e construtoras e manter sua reputação antes da disputa, avaliou a advogada, sob condição de anonimato.

— Erdogan provavelmente ficaria feliz em ver que outras pessoas são consideradas responsáveis por isso. Provavelmente ele vai dizer que "todos os responsáveis estão presos, é o nosso sucesso!" — disse. — Fazer algo ruim para todos os advogados por apenas quererem justiça pelos mortos nesses prédios lhe faria perder muitos votos. E ele tem muito medo disso.

Segundo a norma oficial estabelecida em 1999 e atualizada posteriormente em 2018, toda construção em regiões propensas a terremotos deve utilizar, obrigatoriamente, concreto de alta qualidade e reforçado com barras de aço, além do uso de vigas e colunas distribuídas de forma que absorvam os impactos dos abalos.

Mas, em 2018, o próprio Erdogan anistiou construções irregulares no país, permitindo que empresas pudessem obter licença de construção que não seguissem a norma sob pagamento de taxas ao governo. Cerca de US$ 3 bilhões (em torno de R$ 15 bilhões) foram arrecadados com medida, mesmo em meio a alertas de arquitetos e urbanistas sobre os perigos representados por tais construções.

— É claro que a culpa é do governo, mas já sabemos que Erdogan não a assumirá e que nada acontecerá com ele — acrescenta a advogada. — A parte difícil é que você não pode fazer nada sobre os erros de Erdogan. Não resta um único juiz que tenha coragem. Só os partidos da oposição estão falando sobre isso, mas só conversando, esperando que as próximas eleições mudem as coisas.

Detenção de críticos on-line

Na quarta-feira, durante uma visita a Hatay, uma das cidade turcas mais afetadas pela tragédia, o presidente turco chegou a reconhecer que houve "deficiências" nos esforços de resgate, rebatendo as inúmeras críticas da população, especialmente nas redes sociais, sobre a lentidão da chegada de ajuda em algumas áreas de difícil acesso. 

Admitir as falhas, contudo, não inibiu o governo de promover a detenção de 18 pessoas, segundo o último balanço da polícia turca, por postagens consideradas "provocativas" na internet — isso tudo no mesmo dia em que o Twitter ficou indisponível, a não ser por VPN, em todo o país por cerca de 12 horas.

Na experiência da advogada, defender pessoas acusadas de insultar o governo é algo com resultados limitados na Turquia, onde a repressão contra o dissenso cresce sob Erdogan. Mas, para a advogada, essa situação é um estímulo a mais para prosseguir com a articulação contra as empresas que desrespeitaram a lei.

— Você pode ser facilmente rotulado como um advogado que apoia os "oponentes". Posso não ter coragem de fazer isso sozinha, mas há muitos profissionais importantes reunidos agora — relata. 

— O único efeito colateral é ser rotulada, mas não tenho medo de algo maior que isso, já que pesquisas indicam que há uma rejeição de quase 50% da população contra ele. Então sei que não têm forças para silenciar todas essas pessoas.

O índice de desaprovação do governo turco se reflete também na forma como as pessoas se mobilizam para arrecadar doações para as vítimas do terremoto. Iniciativas privadas têm obtido mais sucesso nas ações de ajuda do que as promovidas pelo próprio governo, como pode ser observado em um site turco onde há variadas opções de doações.

— O número de doações mostra o quanto as pessoas não confiam no governo para arrecadar seu dinheiro — aponta a advogada. — Eles nos cobram muitos impostos desde o terremoto de 1999. Mas agora estão pedindo caridade, enquanto o próprio povo tenta ajudar por conta própria. Quem sabe o que fizeram com o dinheiro dos nossos impostos?

Ajuda chega à Síria


Nesta quinta-feira, entrou em vigor o estado de emergência de três meses para 10 das 81 províncias da Turquia, decretado pelo presidente turco na terça-feira. O número oficial de mortos no país torna esse terremoto o mais mortal desde 1939, sendo o sexto mais fatal deste século no mundo.

O total, entretanto, deve ser muito maior — com especialistas estimando que mais de 180 mil vítimas ainda estejam sob os escombros —, já que mais de 6 mil imóveis foram destruídos. 

As baixas temperaturas do inverno e o passar do tempo também potencializam os obstáculos nas buscas por sobreviventes, além de questões logísticas como a falta de acesso a algumas estradas.

Quase cem países já anunciaram envio de ajuda à Turquia e à Síria. Os Estados Unidos prometeram, nesta quinta, um pacote inicial de US$ 85 milhões (em torno de R$ 450 milhões) para ajuda emergencial. 

Segundo um comunicado da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), os fundos para a Turquia irão para organizações parceiras "para entregar urgentemente a ajuda necessária a milhões de pessoas", incluindo comida, abrigo e serviços de saúde de emergência. 

Já para o outro lado da fronteira, a ajuda será realizada por meio de parceiros locais, já que os EUA se recusam a negociar com o presidente sírio, Bashar al-Assad, pressionado por Washington a assumir a responsabilidade pelos abusos na guerra civil de 12 anos.

Segundo a ONU, que enviou o primeiro comboio de ajuda à Síria nesta quinta-feira, o país tem enfrentado inúmeras quedas de energia como consequência dos terremotos, afetando hospitais e impactando a cadeia de suprimentos. Além disso, a neve também tem impedido os esforços de resgate na região, o que diminui ainda mais a esperança de encontrar sobreviventes nos próximos dias.


Fonte: O GLOBO